A TERCEIRA MORTE
Morremos mais de uma vez, de maneiras diversas... Estar vivo é somente uma constatação sobre areia movediça. Nossos pés andarilhos vão traçando uma rota ao acaso, ao sabor de emoções passageiras e nunca sabem a hora em que irão submergir para sempre neste deserto escuro e frio, neste descampado que leva nosso olhar direto para um horizonte num Futuro que vai se afastando na medida em que vamos em seu encalço.
Quem saberá onde a Terra encontra o Céu, onde começa o Corpo e termina a Alma, de que forma Vida e Morte são faces do mesmo Rosto, um Nada vestido de Luz e Trevas, quem saberá?
Ao sermos jogados do Ventre Materno para o que chamamos Mundo, ao sentir a dor da primeira respiração, conhecemos nossa primeira Morte.
A segunda e que causa tanto temor, não passa de uma contingêcia de nossa transitoriedade, uma sequência em que estamos SENDO simplesmente, em que nos submetemos a um arrastar de dias e noites, em que amamos, odiamos, enfim cumprimos nosso destino de animais pensantes e finitos, ainda bem mais sob as rédeas dos instintos do que quer supor a vasta literatura produzida por egoísmo e vaidade, por medo, por solidão. A simples sabedoria de um indígena diante da natureza, põe em cheque mil teorias filosóficas estéreis.
A Terceira Morte, esta virá resoluta e impiedosa ao nosso encontro, sorrindo desdenhosamente da nossa credulidade, ela virá, sim, a cavalo em desabalada carreira, como pesada mão batendo forte na pálida face. Basta que deixemos aberta a porta ...
Eis a morte do sonho mais caro da humanidade, naufragado como barco em mar revolto... abatido por pedra certeira em mão de menino, despedaçado nas curvas do caminho em emboscadas letais... Eis a morte da ilusão do ser humano perfeito, ideal. A constatação de que a nossa existência não é imprescindível, quiçá necessária, para que o universo continue a existir. E quem tiver a chance de, após pousar de supremo árbitro das iniquidades alheias, vislumbrar a própria pequenez envolta em disfarces de auto-perdão, de raciocínios que se perdem em labirintos de intelectualizada complacência aos próprios deslizes, em teorias que exaltam um ser humano nascido diferenciado, sublimado nas escolhas sem mácula, de uma bondade ilusória e enganadora cuja máscara não resistirá ao primeiro incômodo mais sério, este terá começado a viver a sua Terceira Morte. E a partir daí, de nada mais servirá o pedestal em madeira carcomida por cupins onde sua vaidade o colocou.
E nós pobres mortais, em tanta imperfeição forjados, sequer percebemos que somos apenas frágeis vontades e atores condenados a contraditórios papéis, e que por mais que busquemos a luz nas trevas, essas nos farão sempre tropeçar nas mesmas pedras, estaremos sempre a compor os mesmos quadros, a apertar as mesmas mãos, a cumprir um destino incompreensível de criatura passante, cuja existência não foi sonhada nem por anjos, nem por demônios. Ela apenas aconteceu e Deus , se ele existe, provavelmente não entregou nas mãos de ninguém a palmatória do mundo.
O mundo perfeito sonhado por alguns já nasce morto, uma vez que é engendrado por uma natureza ou condição cuja fragilidade e deficiência somente foram cobertas por um verniz que não resistirá a uma sessão de tortura, ao desepero de uma guerra, aos suplícios de grandes perdas, aos apelos da fome.
A nossa humanidade nos trai a toda hora. Ela nos faz prepotentes, injustos, cruéis em uma fração de segundos. E aqueles que lograram destacar-se em qualquer empreendimento, infelizmente terminam movidos mais por soberba do que pela autorcrítca. Além disso, muita gente acha justo decepcionar-se com as falhas alheias, como se não falhassem nunca, argumentam muito bem contra os seres ignóbeis que nos rodeiam e sob a justificativa de lições de ética, descarregam o fel guardado em estoque em quem estiver mais próximo. Por medo ou ressentimento bate-se muito mais do que o necessário, quando se deseja afastar um intruso. Quem não gosta de um bom pára raios à disposição? E mesmo que alguém tenha dado o melhor de si por longo tempo, basta que essa pessoa incorra em erro para ser decretada sua falência moral e decidir-se que tal criatura deve sumir , esquecer que o ofendido existe e nem sequer pronunciar o seu nome. Mas bastava afastar-se dela sem grandes alardes. Por que tantas pessoas se julgam com direito a um sentimento tão grande de decepção que para ser exorcisado tem que crivar a criatura de todas as acusações e de um jeito que ela termine no chão, sem condições de reagir? Esta visão unilateral, este estrabismo impede de que se perceba que os outros não têm que corresponder a nossas expectativas e que é mais natural alguém incorrer em uma falha grave alguma vez na vida, do que viver sob o jugo de um código de posturas como uma guilhotina sobre a cabeça o tempo inteiro, na ameaça de cortá-la a qualquer momento.
Condenar sumariamente as falhas alheias, atacando quem julgarmos estar agindo se forma errada, pode nos levar a uma exposição, a um confronto onde aconteça o efeito contrário. A força empregada ao chocar-se ao alvo como um dardo, poderá dobrar seu poder letal e voltar ao ponto de partida de forma arrasadora, como um bumerangue. Nada se constrói com pancadas.
A Terceira Morte proporciona a quem for por ela atingido, uma desesperança salutar, aquela que nos deixará nus diante do espelho, prontos para conviver com as nossas imperfeições da melhor maneira possível, basta que joguemos no lixo todas as idéias castradoras, todas os mitos de grandeza onde nos enquadramos e nos resignemos a nossa total e maravilhosa INSIGNIFICÂNCIA !!!