Vago Mundo
De repente, entre os canais de Amsterdã, tem consciência de que os sonhos da infância viraram realidade. Lembra bem: tudo começou com a leitura do livro “Viagem pelo Mundo”, parte de uma coleção ganha quando aprendeu a ler. Presente do pai, incentivo da mãe. Na verdade, nada ao gosto das crianças, a não ser a grossa capa vermelha: muito texto e pouca fotografia... e, quando havia, era em preto e branco.
Tratava-se do relato circunspecto de cruzeiro de classe média pelo Mediterrâneo. Isso por volta de 1960. O navio percorria toda a costa europeia, africana e Oriente Médio. Muitos daqueles nomes lendários seriam conhecidos no futuro: Terra Santa, Atenas, Pireu, Acrópole, Peloponeso, ilhas gregas, Bósforo, Constantinopla, Cairo, Nilo, pirâmides, faraós, igrejas coptas e ortodoxas, mesquitas, islamismo, deserto, beduínos, camelos, dromedários...
O sonho se materializou em 1976, final de outono em Amsterdã, a icônica capital da liberdade naqueles tempos. Pela primeira vez vê fumarem maconha à luz do dia, impunemente, a poucos passos do Palácio Real. Nem a rainha Juliana nem o príncipe Bernardo, ao que consta, se indispunham com a turma de jovens curtindo seu baseado nas vizinhanças, amando livremente Beatles e Rolling Stones. Pela primeira vez, vê mulheres exibindo-se nuas em vitrines, contraditória expressão do “women’s lib”.
Agora é verdade, é real: perambula desde que chegou, é o primeiro dia no coração da Holanda. Aterrissa em Schiphol pela manhã, logo encontra um hotel, guarda mochila e sai a abraçar o mundo. Pelos canais, passeiam barcos com turistas, como no cinema, como nos postais que enviava de cada lugar. Compõem a paisagem um realejo, a valsa “Bombons Vienenses”, o macaquinho e finos flocos de neve caindo do céu, sua primeira neve, anunciando um inverno só visto no cinema. O coração bate apressado ao entender que iria ver, dali em diante, tudo aquilo ao vivo e em cores. A Europa estaria em suas mãos nos próximos anos. Isso não tem preço, tem que comemorar, you’ve got it, man!
Até aquele despertar em Amsterdam, tinha passado por vários lugares de seus sonhos. Saiu do Brasil pelo Rio de Janeiro e entrou na Europa pela Itália, com rápida escala turística em Roma. O destino eram os areais da Arábia Saudita, onde iria trabalhar. Quase sem adaptação, porém empurradas pela volúpia de conhecer, vieram as perigosas viagens oficiais a um Líbano em guerra civil. No meio tempo, que ninguém é de ferro, um passeio a Damasco e a Istambul. Israel, destino cobiçado, nem pensar. Alguns encaravam proibições e iam, mas a ginástica para enganar a imigração saudita no retorno não compensava. Iria outra época, depois de desligar-se do trabalho na terra da família Saud. Nunca foi, porém, a não ser recentemente... pelo Youtube.
Porém, o tempo não tomava fôlego, ia em frente, cavalo indomável, e logo transformações ocorreriam e rotas mudariam. Certo dia, os palestinos destruíram o aeroporto de Beirute, as viagens a trabalho mudaram-se para Atenas, primeiro contato direto com a Antiguidade e a Europa do sol. Atenas, Atenas! Andou sem rumo por todo o centro, quase casou-se em Lycabettus, ficou íntimo de garçons do boêmio bairro de Plaka, esteve na Acrópole e arredores um punhado de vezes, visitou o Pireu uma vez e, dali, fez dezenas de cruzeiros pelas ilhas: realidade superando sonhos.
O que é ruim para uns é ouro para outros. Encastoado na charmosa Atenas, já se achando no Paraíso, pois não é que um grupo terrorista alemão, o “Baader Meinhoff”, sequestra um avião da Air France naquele aeroporto e leva os reféns para Entebe, aeroporto de Kampala, na Uganda de Idi Amin Dadá. Daí, a capital grega deixa de ser segura para aquele tipo de trabalho, coisas da “Guerra Fria”. Nessa época, para segurança das comunicações, existiam os “correios diplomáticos”, que levavam e traziam a correspondência oficial voando por todo lado. Essa era a razão de tantas viagens e tantas mudanças de rotas.
Depois do sequestro em Atenas, teriam de procurar postos mais seguros e o enviaram para Genebra. Além da possibilidade de ancorar no centro da Europa por uma semana, limitados por conexões aéreas para o retorno ao Oriente Médio, os “carteiros poliglotas” foram obrigados a fazer escala num filme com nome de cidade: Casablanca. Mas, nessa lendária metrópole, só escala mesmo, nem sequer conheceu o aeroporto. Genebra, porém, iria compensar qualquer sacrifício: estava perto de tudo, voos e trens para todo lado, era a sopa no mel. Enquanto aguardava o dia do voo da volta, o sonhador se conscientizava de que havia realizado o sonho. A Viagem pelo Mundo já era mais que um livro e haveria muitas páginas daí em diante para visitar.