João e a fome.

Já era tarde, passava das dezoito horas e trinta minutos. O carcereiro veio até a porta da cela, do cativeiro, em o jeito sério,  aparentando não aceitar qualquer tipo de conversa.

Ele perguntou quem era o João. Eu respondi: sou eu! Vamos! Disse o carcereiro. --A juiza e o promotor os esperam alí, naquela sala.

Nesse momento, o coração pulsou firmemente, em ritmo acelerado em sinal de angústia para eu não querer ir embora da prisão. Estantaneamente, as gotas do suor frio brotaram na região de minha face. Olhei em minhas mãos, de pele grossa ressecada, com unhas sujas da terra, dos lugares em que não sei mais onde andei; o sangue, nas veias explicitas do meu braço fino, sumiu. --Naquele momento a palidez era a minha única companheira!

O calafrio tomava conta do meu corpo esquelético. Lembrei que os meus joelhos, estavam mais avolumados que as minhas coxas vazias. A roupa, em meu corpo, ajudava a disfarçar a minha estrutura óssea num corpo bípede.

Lembrei-me, que há dois dias, quando terminei de limpar um imenso quintal, depois de várias horas, só com água no estômago, a dona do estabelecimento abriu a porta, e empurrou em minha direção, uma lata de leite cheia de feijão gelado, misturado com arroz. Dexou a lata lá, e fechou a porta novamente. --Aquele foi meu pagamento!

Depois daquela refeição, revigorei as forças, e caminhei até um depósito de lixo, atrás do supermercado. A mim, esse lugar é luxuoso, porque quando tenho sorte, é onde acho alguma coisa para comer. Vasculho os entulhos, os restos, e sempre encontro a saciedade da minha fome, em meio as coisas mal cheirosas.

--Nesse intervalo da cela onde eu estava, até a saleta de audiência de custódia, veio novamente a dor da fome.

Recordei-me que dormindo na rua, às vezes, sonho comendo em um banquete. Quando acordo, meu estômago dói de muita fome. Outras vezes, tenho alucinações. E volto a dormir, tentando esquecer de mim, e não padecer muito.

Já na sala, em frente a juíza, quando ela disse que eu seria solto. Dexei ela terminar de proferir aquelas palavras burocráticas. Pedi licença, e perguntei: --Posso continuar preso, doutora? No semblante de espanto da magistrada, percebia tamanha dúvida e surpresa. Mas o que talvez, para ela fugisse da lógica. A mim, o João, era apenas uma certeza. --Queria continuar preso, porque teria a janta garantida!

Para o meu conforto momentâneo, ela respondeu dizendo que eu podia jantar e sair, pois a "papelada" de soltura, ia demorar para ficar pronta; daria tempo de jantar. --Jantei e fui embora!

No outro dia, no lugar de sempre, no monte de lixo. Achei um lanche pela metade. Dividi com a minha parceira, a galinha. Toda vez em que estou procurando cominda, ela fica ao meu lado. --Aproveito a companhia dela para conversar!

Outro dia, depois de encontrarmos bastante restos. Estávamos sentados comendo, ela olhou em meu rosto. E disse:

--João, quando os humanos deixam outros passar fome, é porque alguma coisa está errada. E nesse aspecto, prefiro eu, a continuar sendo a galinha!

No nosso caso, João, se deixar outro animal com fome, é normal. Pois faz parte da nossa condição animalesca.

--Olhei para ela, sem saber o que dizer!

--Mas sei que sou apenas, o João!

Carlos A. Barbosa.

In: A República com 33 milhões de famintos. Séc.XXI.

Carlos Alberto Barbosa
Enviado por Carlos Alberto Barbosa em 19/06/2022
Código do texto: T7541177
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