Dom Quixote e um aperto de mão

Quando eu era pequeno lembro que eu ia na igreja e, ao final do culto, saudava as pessoas com um aperto de mão. Dentre essas pessoas, havia um senhorzinho de aproximadamente uns 80 anos que se destacava pelo seu aperto de mão pra lá de firme. Não era só que ele tinha uma firmeza na mão. Não. Ele apertava a mão da gente de uma forma que doía e ele fazia questão de demonstrar a força que ele possuía, apesar de sua idade avançada.

Bem, eu sei que eu tô recontando essa história já com a lupa do tempo. Poderia até dizer que “muitos anos e muitos livros depois” eu estou lembrando desse senhorzinho que tinha um aperto de mão pra lá de firme. E por que será que ele fazia isso? Com certeza para afirmar sua força, apesar da idade, mas talvez para afirmar para si mesmo que, apesar do desgaste do tempo, ainda lhe sobrava aquele aperto de mão. Foi a maneira que encontrou de afirmar que estava vivo - ainda -, de dizer para as pessoas que a sua existência não podia ser ignorada.

Bem, provavelmente, esse senhor já deva ter falecido faz tempo. Sequer me lembro do seu nome e nem da sua aparência. Mas lembrei disso. E é engraçado que a literatura meio que cumpre essa função: a de afirmar a nossa existência para além da presença física dos nossos corpos. Ao fazer um livro a gente faz com que as palavras não sejam só a vibração das nossas cordas vocais evocando sons que a gente dá significado. Elas se tornam uma imagem da nossa consciência para os outros. É uma carta para um sem número de leitores.

O aperto de mão do senhorzinho também me fez lembrar do Dom Quixote. Tá que muito provavelmente aquele pau de virar tripa não tivesse aquela força toda, mas em um determinado momento, o fidalgo começa a se embrenhar em livros de cavalaria sonhando com aquelas aventuras e exaltando o tempo dos valores e da ética cavalheiresca. Por ser fidalgo, ele sabia que em algum momento sua família já teve um nome e que lutou em alguma batalha contra os mouros e sarracenos, mas hoje o que ele vê são apenas os campos de Castela e o tédio a que lhe impõem. Ele lê os livros e gostaria de ser aqueles personagens.Decide fazer da vida o que ele vê na arte.

Segundo os existencialistas como Camus e Sartre, uma vida só pode ser avaliada quando já se viveu toda ela. Por isso é simbólico que quando o Quixote volte a ser Alonso Quijano, ele morra. O sentido de ser da sua existência se foi.

Cervantes se imortalizou com a sua obra, mas aquele senhorzinho… bom, ele tinha a mão dele.