SEGUROU O MOLUSCO E GRITOU ATERRORIZADO NO QUARTO DO HOTEL
No antigo jornal O Diário, em Belo Horizonte, comecei a trabalhar como repórter auxiliar antes da maioridade. A profissão era acessível, não estava regulamentada e ser jornalista me parecia algo especial, em que pese remuneração minúscula, cuja prática de módicos salários era adotada pelos veículos de comunicação, em geral, o que ainda vigora, salvo exceções no Rio e em São Paulo. Felizmente, logo troquei as letras pelos números, e segui destino em trabalhos melhor remunerados, em cujas atividades as letras também sempre me socorreram no tocante ao meio competitivo, em que passei a militar. Saber escrever, expor pontos de vista com correção, narrar fatos e propor soluções por escrito, era diferencial que me conferia qualidades. A melhor maneira de se livrar de algum pedido incômodo é solicitar ao demandante que apresente o pleito redigido. Pronto, resolvido.
Viajamos de Belo Horizonte com destino a Maxacalis, urbe além de Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, e bem próxima à Bahia. Transcorria o ano de 1968 e o nosso interesse residia em tribo indígena de mesmo nome, que caminhava no sentido da extinção, haja vista a carência de apoio oficial, a recorrência de doenças várias e a falta de alimentos e remédios. O grupo não era grande, contando, além de mim, com o colega veterano de redação Francisco Stehling e o fotógrafo Jayme Barra. Havia (o pretérito imperfeito do indicativo do verbo haver sempre me amedronta) outros profissionais, alguns vinculados à Secretaria da Agricultura do Estado e, no comando, um Coronel do Exército, de nome Encarnação.
A viagem até Teófilo Otoni foi tranquila pela estrada Rio-Bahia, por onde seguimos trafegando em duas “limusines”, que nos serviam, um Fusca 1300 e uma Rural Willys, veículos que trotavam com desembaraço na pista renomada e perigosa. De Teófilo Otoni a Pavão o cenário mudou bruscamente, e a estrada se transformou num mero protótipo. Alguém desenhou o caminho mentalmente, criou o traçado acompanhando o relevo da geografia existente, alardeou a sua criação, e as pessoas acreditaram que a estrada existia. Acho que chegou até a ser inaugurada, em solenidade festiva e com a presença de autoridades da região, além do direito a discursos e foguetório. Enfim, a crença na estrada que não existia, foi rasgando a terra sertão afora e se transformando em realidade surreal, mas concreta e útil.
Chegamos a Pavão ao entardecer, todos massacrados pelo trajeto tortuoso e hostil. O hotel se chamava Quaresma, de aspecto colonial muito rústico, e pertencia a tradicional família da região. Pavão tinha menos de 5 mil habitantes. O saneamento básico era precário, o tratamento da água potável duvidoso, e a economia do lugar estava restrita a serviços, agropecuária e, naturalmente, ao garimpo de pedras semipreciosas. O município ficava na microrregião de Teófilo Otoni, mas a cidade mais próxima e próspera e não menos miserável à época, era Padre Paraíso, que sofria dos mesmos males, mas em ponto maior. Energia elétrica também não existia a contento, sendo os alimentos conservados na banha, no sal e mediante outros artifícios de eficácia temerária. Pavão seria o pernoite, de onde partiríamos, no dia seguinte, para a cidade de Maxacalis.
No hotel nos instalamos descuidados, porque as portas dos quartos não tinham fechaduras, mas apenas frágeis trancas de madeira, e saímos rua afora em busca de diversão. Bares, igrejas, delegacias e puteiros existem em qualquer lugarejo. Hospitais e colégios continuam mosca branca. Aliás, fico em dúvida sobre o que surge primeiro, se as igrejas ou os puteiros ou, quem sabe, se nascem ao mesmo tempo, em cumplicidade. Algumas casas de oração, sem diretriz e compromisso teológico, acabam se transformando em bidê de puteiro, onde os pecadores se confessam e lavam da alma arrependida as suas culpas insinceras. Atualmente os templos prosperam muito rápido, porque pastores começaram a fazer milagres. Nos puteiros as atendentes ainda não dominam essa prática, o que limita a sua clientela, mas, contam com ajuda de miraculosos adjutórios criados pela moderna indústria farmacêutica.
O bar foi encontrado bem à nossa frente, muito óbvio e escancarado. Musica ao vivo, com viola bem tocada, generosa cachaça e cerveja quente à solta. Carne de sol de primeira, e nos fartamos; pagamos quase nada, não pedimos troco e nos recolhemos ao Hotel Quaresma, devidamente alcoolizados e sonolentos.
O Hotel era precário, com vários quartos, enormes, pintados de branco e com muitas camas, parecendo destinado apenas a viandantes tropeiros. O prédio não tinha laje de cobertura, as paredes subiam na direção do teto e paravam em altura padrão e depois vinha o vazio, entre as paredes e o telhado, espaço que recolhia os sons oriundos de todas as direções, inclusive os da rua. Ficamos em cinco no mesmo quarto; as camas, de madeira óleo bálsamo, maciças, não eram ruins e as cobertas estavam asseadas e bem cuidadas. Acordei lá pelas tantas, encalorado. Me levantei e percorri longo corredor em direção ao banheiro. Na volta passei pela cozinha, de instalações modestas, e na mesma avistei, sobre a bancada feita com acabamento de cimento natado de cor escura, largada displicente e despojada, uma língua de boi. Era grande e gorda, devia pesar um quilo, e apresentava sinais de ter sido raspada parcialmente e deixada à espera do preparo final, para o almoço seguinte. De imediato, resolvi me divertir com os companheiros, que dormiam. Peguei a língua e, no quarto, depositei aquele músculo enorme sobre o braço do Barra, que repousava em sono profundo. O Jayme estava com o corpo esticado, e o braço direito disposto em forma de V acomodado debaixo do travesseiro, formando entre o cotovelo e o queixo o vazio que preenchi com a língua. As escamas do músculo, de pronto, conturbaram o seu sono, provocando no Jayme alguns arrepios e leves movimentos de cabeça à direita e à esquerda, que fazia alternando o rosto, em contrações nervosas. Em minutos o Barra estava íntimo do molusco e balbuciava sons estranhos, fazendo biquinho com os lábios carnudos, e se expressando num dialeto esquisito. Barra lhe colou o rosto e no molusco, com leve sorriso, esfregou as narinas e inspirou com satisfação, se engasgando com os fluidos que escorriam pelas papilas filiformes da coisa. O líquido, que descia, empapuçava o seu cabelo e lhe melava o pescoço, deslizando em direção ao colo. Seguiram-se carícias e afagos no epitélio escamoso da língua, todos gentis, delicados e de conotação sensual. O quarto estava em penumbra e refletia luz tênue oriunda da portaria do Hotel. Súbito, incomodado pelos fluidos que umedeciam a cama, e pela aspereza daquele ser sinistro, que havia se acomodado entre as cobertas e ameaçava escorregar entre as suas pernas, Barra, que dormia nu, acordou. Sobressaltado e com os cantos da boca repletos de gramíneas subtraídas das reentrâncias do ser hediondo, Jayme segurou a língua com as duas mãos, mirou as suas papilas e soltou um urro de SOCORRO!!!! atirando o molusco contra a parede do quarto. A língua, em voo acrobático, girou no ar, em ricochete, e caiu de volta, em outra cama, desfalecida. Os companheiros se levantaram, todos, ao mesmo tempo, e partiram para cima da criatura indefesa tombada inerte e agora no chão, esmorecida, gritando e lhe desferindo golpes e sapatadas. Outros hóspedes do Hotel acorreram ao quarto, chamados pelo porteiro, gago, com dificuldades de expressão. O ser misterioso restou quedado, morto de novo e ensanguentado, até que o mistério foi sendo aos poucos desvendado, mediante o abandono de várias versões, que contemplavam toda sorte de explicação, nenhuma delas plausível. Diversão saudável, inofensiva e gratuita: tenho dito!