FRANCELINO, A BÍBLIA PAGÃ E O DEDO DO GENERAL
Conheci o Francelino Rocha em 1957, no primeiro ano do curso primário, no Colégio Dom Silvério, em Belo Horizonte. Lá se vão 65 anos e continuamos vivos, por enquanto. Passamos várias etapas, no colégio, convivendo com as manhas maristas, usando uniforme, rezando todos os dias o terço, na aula de religião, assistindo missa às sextas-feiras, quando comungávamos e aspirávamos, ansiosos, pela contemplação com o diploma de Honra ao Mérito, uma espécie de comenda conferida aos alunos e não mais sei a que título tais méritos se referiam.
O destino se encarregou de também nos unir, eventualmente, na idade adulta, mediante interesses comuns no segmento negócios. Francelino, durante algum tempo, esteve associado ao conhecido Jorge Luz, profissional da área de projetos, sócio majoritário da Rota Engenharia, que culminou a carreira alcançado pelas atenções do Juiz Sérgio Moro, mas, que, felizmente, sobreviveu com poucas sequelas. Na memória trago lembranças das ferragens dos banheiros da residência do Jorge, no Condomínio Mandala, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, todas folheadas a ouro e de memorável peculiaridade. Mas, as torneiras e o Francelino não se misturaram e os interesses comuns entre ele e o Jorge foram passageiros, porque Francelino acabou por se tornar o acionista majoritário da Paulo Habib, uma das maiores, senão a maior, empresa projetista do país. Em suas mãos a Paulo Habib rejuvenesceu, se tornou maior e também foi a pique, naufragando vitimada por atrasos no recebimento de faturas e por algumas fraturas expostas colaterais.
Mas, como tudo passa e os sucessos e os insucessos vão se transformando em conversa de bar, porque a fila anda, estávamos, de novo, juntos, na tentativa de conquistar um dos mais interessantes projetos no setor portuário, uma grande obra de ampliação a ser empreendida no Porto de Santa Fé, na Província de mesmo nome, na Argentina.
No país vizinho, como no Brasil, as decisões de maior relevo costumam transitar pelos gabinetes palacianos, que cuidam dos ordenamentos mais relevantes no tocante aos casos e aos casos. E, na época, quem mais entendia dos casos e dos seus atalhos, na Argentina, era o articulador italiano, Máximo del Lago, amigo íntimo do ex-presidente Menen, com quem se envolveu num rumoroso caso relativo a veículo Ferrari dado de presente ao Presidente, Ferrari, este, que transitou mais como escândalo nos jornais, do que pelas avenidas portenhas. E, foi pelas mãos do Máximo, criatura de excepcional carisma, rigoroso no trajar, elegante no falar e extremamente cuidadoso no agir, que se abriam as portas da Casa Rosada, quando, na cadeira de presidente, estava de passagem a controvertida Cristina Kirchner.
Era final de semana, a Casa Rosada em off e na mesma presentes poucos funcionários, apenas o suficiente para agilizar pendências de cunho diferenciado, e a manutenção da segurança do prédio. Fomos recebidos, Francelino e eu, pelo então Chefe de Gabinete da Presidente Cristina Kirchner, Alberto Fernández, com quem fizemos o desjejum bem ao estilo portenho, com farto sortimento de guloseimas e produtos vários de excelente qualidade. A conversa não foi rápida, transitou pela política, pela economia, por algumas referências divertidas sobre figuras notórias de ambos os países, e também e com destaque, sobre o Porto de Santa Fé, cuja obra carecia de recursos financeiros e de financiamento internacional. Alberto Fernández encarregou um dos seus auxiliares de conosco percorrer os principais pontos de atração da Casa Rosada, inclusive o gabinete presidencial. Conhecemos toda a parte social e administrativa do prédio, com breve parada na sacada de onde Evita Perón fazia discursos inflamados, secundada pelo marido que, conforme me cochichou ao ouvido o Francelino, lhe fazia ousadas carícias nas nádegas, estimulando com dedos vigorosos a sua contundência verbal.
Francelino devia ser a reencarnação de algum operário apontador de obra. Ele anotava em um caderno pautado, no formato de bíblia, tudo o que via, o que escutava, e o que lhe passava de repente à mente, como algo relevante. Sua mão dedilhava a caneta com destreza admirável, mas essa organização me deixava nervoso. Eu tinha por hábito me esquecer de nomes e de fatos notórios, não guardava endereços e sequer datas importantes. Se torturado fosse, morreria espancado, certamente, mas com a língua presa, não pela discrição, mas pela absoluta incapacidade de lembrar. Assim, coloquei como meta o desaparecimento da “bíblia” do Francelino. Na Casa Rosada, depois do toor pelas suas dependências e das elucubrações sobre as preferências sexuais da Evita Peron, Francelino foi ao toilette e deixou aos meus cuidados a famigerada bíblia. Fiquei trêmulo de emoção. Aquela criatura sinistra, perigosa, repositório de granadas, de lancha chamas, e de outras tantas ferramentas de terror, estava posta em minhas mãos, indefesa e pronta para o abate. Não tive dúvidas; com a mão direita tomei posse de uma garrafa de Catena Zapata, que como outras tantas estava alojada em estante do gabinete do assessor que nos acompanhava, e com a esquerda atirei pela janela o livro perverso, a bíblia pagã, o repositório das temerárias memórias. Jogada à calçada, aquela bomba se postaria inerte e sem valor, apenas um amontoado de garatujas e rabiscos sem nexo para os mortais comuns. Francelino retornou do toilette e, antes que perguntasse pela bíblia, lhe entreguei a garrafa do Catena, a cujo gesto ele se quedou reconhecido. Ato contínuo, agradecemos a oportunidade da visita, descemos as escadas e chegamos à rua, quando ele me perguntou: e o meu caderno? Sei lá, pô. Acho que você largou no taxi, e desconversei.
Sobre o Porto, a concorrência não prosperou, mas o chefe de gabinete da Cristina Kirchner, o nosso anfitrião Alberto Fernández, cresceu na política e se tornou o atual presidente da Argentina. Acho que a bíblia do Francelino acabou fazendo falta.