Cuidado com orelhas linguarudas


Não gosto de orelhas linguarudas.

E orelhas de livros (de um bom romance, por exemplo) podem revelar-se incomodamente linguarudas.

Vai a nossa Zuleica — leitora desprevenida ou comum a quem sugerimos um dia desses A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector —, entra numa livraria e retira de uma estante o tal volume. Sem pressa alguma, enquanto segue por um longo corredor até a caixa, consulta rapidamente orelhas e contracapa do verdadeiro tesouro que tem em mãos. De repente, pára no meio do caminho, atravancando a estreita passagem. Mal consegue acreditar nos próprios olhos. Torce o nariz (um lindo nariz de princesa nagô), olha apavorada na minha direção, que estou na porta da loja terminando de fumar um cigarro, quase desiste da compra.

Lá está, na primeira orelha, linguarudíssima, todo o enredo da intensa, misteriosa e iniciática confissão clariciana. Inclusive o episódio clímax, que G.H., ao final do relato, anuncia no nível mais alto de tensão: "É que não contei tudo."

Bem, o nosso José Castello, assinando a orelha, contou por ela. E Zuleica não gostou nada, pois nada conhecia do romance.

Quanto a mim, imerso em livros, não me preocupo muito com essas coisas, mas acho que neste caso minha amiga tem toda a razão. Quando em 1968 devorei pela primeira vez Grande sertão: veredas, não fazia a menor idéia do segredo de Diadorim, e isso foi de uma importância sem tamanho em minha leitura.


[26.11.2007]