Bicho 2
Ele dorme desconfortavelmente sob um lençol carcumido, à beira de um ponto comercial!
Um cão vira-lata divide com ele o metro quadrado e o pão dormido… e o resto.
Emergencial é abrir o comércio! Sim, 7 em ponto.
Mas, às 5:30, já tem gente preparando os mói de coentro, limão, cebola, tomate; dona Zefa já se atarefa com o café da manhã, que vai vender aos feirantes e empregados dos frigoríficos, em sua maioria.
Urge o dia, arde o sol, surge o dinheiro, o troco, o suor… Tem gente ali que trabalha o dia todinho pra, no final da tarde, ainda ter de cuidar de filho, neto, das contas, marido, janta, casa - e a renda só dá pra isso: sobreviver. Mais nada. Mas falando sobre viver, pergunto - não a ti, que sei que és bem vivido, mas a outro alguém: quem não tem pensado - ou melhor - quem ainda não pensou em suicídio?
Pengunto, mas não pretendo resposta.
O sem teto, enfim, procura outro chão pra ocupar. Queria me desculpar por não ter feito protesto…
Mas deixo-lhe um melão como oferta, que comprei de um ancião triste, magro, parecido comigo. 2 por cinco. Estava doce, a despeito do amargor da ressaca da véspera. Da vida. O armagor...
E eu só queria dormir em paz… Mas sei que aquele infortunado está desalojado sob essa tempestade; parece que Deus está com raiva dessa gente…
É preciso preces para Ele parar.
Não, é preciso, antes, se revoltar!
Tenho visto, dentro da noite, alguns seres charfundando no vício. Mas é difícil não tropeçar na maldita pedra no caminho - posto que não há caminho, nem pernas, só aquele cansaço que desespera…
Quem sou eu pra julgar? Aquela menina que faz ponto poderia estar estudando sobre as mazelas sociais, dando palestra por aí… mestranda!
Mas a única carreira que conheceu foi a de poeira na cara
E se tornou craque em preparar um cachimbo com uma latinha de coca...
Minha ressaca moral não passa!
Eu gosto mesmo é de me machucar
Aprendi a amar tudo que me faz mal e, no final, penso que o mal sou eu.
Alguém pra me curar?
Se não existe cura…
Nem culpa
Só cáries, nicotina e uma carência abismal de afago - onde tu, pobre leitor, se afoga na cachaça quando não o tem - e se tem, já não sacia mais tuas crises existenciais…
Essa ausência de tudo que tu sentes, que tu fostes um dia, do singelo primeiro beijo ao sublime eu te amo, do que foi ao que não pôde, do pranto ao prazer… essa ausência toda também sou eu!