Disgraça da cachaça

Não sou bom bebedor de cachaça, nunca seria um conhecedor a ponto de emitir juízo avaliando o autêntico destilado brasileiro. Com muita moderação, mais porque meu organismo resiste muito pouco à branquinha, sou um apreciador amador. Mas tenho muita consideração pela bebida que vem conquistando reconhecimento no mundo todo. Não só pelo fato que a boa caninha não fica nada a dever, por exemplo, aos melhores vinhos: ela também revela as qualidades do solo, do relevo, do clima, da qualidade da cana que lhe deu origem, do cuidado na destilação e no acertado amaciamento em madeiras como a canela sassafrás ou frutos como o cambuci, que lhe completam a genealogia tupiniquim.

A cachaça tem ainda outro atributo que a torna única: é bebida de pobre, que tem nela uma companheira, que ele chama de aninha, baronesa, brasileira, dengosa, dona-branca, ela, imaculada, januária, maria-branca, moça-branca, patrícia, perigosa, sinhazinha... Tantos nomes femininos traduzindo a busca de encontrar o consolo amoroso que a realidade da vida só faz negar.

Historicamente, a cachaça não tem concorrente entre os destilados do mundo: ela evoluiu do pinga-pinga que gotejava do teto pela condensação dos vapores alcoólicos da garapa, nos tachos de produção de açúcar nos primitivos engenhos coloniais. Gotas que eram a fugaz remissão dos supliciados negros escravos, de quem tinham roubado a pátria, o povo, a família, a liberdade, a dignidade humana. Descoberta pelos escravos, a cachaça logo se tornou o segundo principal produto dos engenhos, utilizado como moeda no mercado escravocrata.

Apesar do respeito que lhe dedico, a cachaça certa vez pregou-me uma safada de uma peça. Em mim e no meu cunhado, ele sim um apreciador mais credenciado que eu. Ainda nos anos 1990, no Mercado Municipal de São Paulo, comprei várias garrafas de uma cachaça mineira, então ainda desconhecida. Ela foi recomendada pelo vendedor de uma especializada cachaçaria, atendendo a dois critérios que antecipei: boa e barata. Em casa, ao experimentar a dita cuja, surpreendi-me: ela era muito boa! Suspeitei da minha avaliação, mas cada vez que recebia um amigo cachaceiro e ele experimentava aquela branquinha, ele confirmava meu julgamento: a cachaça era muito boa! Segundo alguns, a melhor que já tinham experimentado.

Então guardei uma garrafa para meu cunhado, devia-lhe um agradecimento. Essa garrafa esperou anos, até que surgisse a oportunidade de levá-la. Morávamos em cidades distantes, ele no interior de São Paulo, eu no Paraná. Até que, quando entreguei a garrafa, ele a olhou com certo desprezo, e até fez algum comentário de desaprovação, não lembro bem qual foi. Na hora considerei-o um presunçoso mal agradecido, mas não trocamos sinceridades a respeito. Esquecemos o assunto.

Até que, meses depois, numa outra visita à cidade de meu cunhado, encontrei aquela mesma cachaça no supermercado. Feliz, comprei algumas garrafas. Só fui provar da nova aquisição de volta à minha casa. Então veio a decepção, e a compreensão: aquela cachaça já não estava tão barata como anos antes, mas não tinha nem sombra da qualidade original. A produção e o preço tinham aumentado, as garrafas tinham alcançado as prateleiras de supermercados triviais. Mas o apuro perdera-se.

Ainda não perguntei ao meu cunhado se ele chegou a degustar daquela garrafa que lhe dei. Ou se fez com ela jarras de caipirinha, para os dias de feijoada em família.