O GUERREIRO E A PESCADORA

Orlião era um jovem do povo Mor-mor, com aproximadamente 17 anos. Não tinha ainda passado pelo ritual da maioridade, onde deveria depositar no altar da Deusa a cabeça decapitada de um inimigo. Sem ser declarado homem pelo seu povo, não poderia se casar. Só precisava de uma boa batalha à frente, onde pudesse se provar, para, enfim, deixar de servir como recruta. Mas por enquanto, fazia parte da força de reconhecimento que mantinha a conquista da Ilha Terceira e de sua população de pescadores. Uma parte da tropa havia adentrado a mata à procura de possíveis riquezas escondidas na floresta, já que a população exibia boas lâminas de ferro e adornos de pedras coloridas que, nos mercados, se chamavam opala. Outra parte patrulhava as praias e mantinha em aterrorizado silêncio a pacífica população de pescadores que vivia na ilha desde tempos imemoriais.

Os conquistadores se abrigavam na melhor casa – a casa do chefe – onde eram servidos à mesa três vezes por dia, não só de peixe, mas da carne de caça que traziam da floresta. Era abundante em veados, lobo-guarás e onças. A carne das grandes serpentes também era apreciada. Mas sobre todas as outras, reinava o porco do mato. A carne que se desfiava facilmente e seu leve sabor eram inigualáveis ao paladar.

Orlião gostava das refeições, e gostava especialmente quando Juta servia seu prato. Ela era filha de pescadores e tinha a pele morena e grandes olhos verdes semiocultos na franja de cabelo preto e liso. Devia ter a sua idade. Orlião queria casar-se com ela. Estava apaixonado. Não tinham permissão para se aproximar da população local, mas sempre podiam olhar. E o que ele via lhe agradava cada vez mais. O casamento entre conquistadores e conquistados não era incomum e ele tinha certeza que, depois de conhecer seu povo, ela iria acostumar-se facilmente e ser muito feliz. O fato dela devotar-lhe amor sustentava suas esperanças.

A moça, invariavelmente, destinava ao prato de Orlião as partes mais gordurosas das carnes. Esta era a forma com que ela declarava seu amor por ele. Comer muita gordura era considerado o privilégio dos maiores guerreiros. E os guerreiros Mor-Mor eram grandes mesmo. Ter dois metros de altura era comum entre eles. Nutriam-se mais do que os outros porque tinham acesso a mais gordura. Da saborosa, escorregadia e temperada gordura. Em certos dias, o prato de Orlião chegava a transbordar, e ele comia tudo, desejoso de tornar-se também um grande guerreiro, e de honrar a muda declaração da moça.

Sempre que ela entregava o prato, sustentava o olhar dele por um tempo. Os olhos brilhavam e as faces enrubesciam. Havia calor naquele olhar, Orlião sentia. E mirava de volta, com mais ternura ainda, desejoso de transmitir-lhe seus sentimentos.

Quando não estava patrulhando a praia, ele e os amigos, os mais jovens da embarcação, tinham o hábito de reunir-se à porta do artesão. Era da aldeia e devia ter o conhecimento de onde era o filão das opalas, pois diversas pedras em diferentes estágios de lapidação foram encontradas à sua mesa de trabalho. O homem se recusava a dizer onde as conseguia. Por isso, foi o único aldeão que sofreu violência. Ficava preso num quartinho sem janelas, noite e dia sentindo o cheiro dos próprios excrementos, às vezes apanhando um pouco, nem sempre sendo alimentado. Aos rapazes parecia cômica a figura machucada e orgulhosa, que mal tinha forças para erguer o olhar, e os seus hematomas no rosto. Certo dia apostaram quem conseguia arrancar um dente dele com um soco. Orlião venceu. Mas o que ele não sabia era que a moça era filha única dele, e chegara a tempo de ver aquele cão estrangeiro esmurrar o queixo de seu genitor. Juta fervia por Orlião, sim, mas era de raiva. Naquele momento, ele se tornou o símbolo de tudo que estava dando errado na ilha, o condutor de toda peste, o sortilégio de toda praga, a estatueta do falo que rebaixava a mulher à condição de sem marido; ele era o mensageiro das trevas. E a impressão ruim, uma vez instalada, começou a causar seus efeitos.

Colocava gordura no prato do jovem, sim. Era um gesto de desprezo. Dar a ele o que não se aproveita como alimento, como se pudesse matá-lo de desnutrição só com a gordura. Ele era jovem: não devia ter muita influência entre seu povo e não saberia reagir ao ódio concentrado de uma mulher. E ela o encarava com os olhos chamejantes de vontades assassinas, dia após dia, esperando que a força do sentimento paralisasse seu coração e o jogasse por terra. Mas, para sua surpresa, o rapaz não só retribuía o olhar – com uma expressão parelha à amizade – como comia de bom grado todos os pedaços inferiores que ela lhe dava. Parecia gostar. Aos porcos, o restolho, resmungava ela. E continuava servindo gordura.

Também lhe chamava a atenção a firmeza com que afastava os amigos do caminho dela, para que pudesse circular em paz. Eram bons rapazes, apenas tinham o costume de mexer com as mulheres solteiras. O dano que provocavam era só o constrangimento, mas as mulheres da localidade odiavam esses momentos. Ser defendida era bom. Juta, surpresa, descobriu que podia ver o estrangeiro de forma mais racional em algumas ocasiões, como se fosse possível achar valor naquele cão. Orlião, por sua vez, viajava por sonhos loucos povoados de aventuras, com filhos lindos e Juta a seu lado.

O impasse não poderia durar para sempre. Os exploradores voltaram da mata com a localização das minas, o artesão foi solto e medicado pelos seus pares, os barcos se aprovisionaram para partir. O jovem Orlião teria, mais adiante, sua oportunidade de tornar-se homem e depositar sua terrível oferenda aos pés da Deusa. A excitação entre os Mor-Mor era grande, mas uma preocupação tirava o sono do rapaz: como fazer com que Juta o esperasse até cumprir suas obrigações? Levado o assunto ao chefe, foi autorizado a dar à moça um símbolo de união conjugal para que aguardasse até sua volta, valendo a imagem como compromisso. Feliz por ter achado uma solução, empreendeu o jovem à procura da pedra certa, entregando-a ao artesão para que fosse esculpida conforme o modelo. Um cordão para amarrar ao pescoço complementou a dádiva.

No dia da partida, com todos reunidos em volta do chefe, a jovem foi chamada para receber a oferenda e ouvir as palavras do legado. Ela estava surpresa, mas foi-lhe explicado que se tratava de um presente para provar as intenções do rapaz referentes à sua pessoa. O desprezado tinha intenções consigo? Uma desgraça daquelas podia querer o quê? Esta era de talhar o leite. Mas a curiosidade a venceu e ela compareceu para receber.

Era um pequeno falo de pedra.

Tangará da Serra, 09/06/2022.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 09/06/2022
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