LAMPIÕES APAGADOS: UMA JORNADA AO CORAÇÃO DA NOITE

Todas as noites são escuras, mesmo aquelas iluminadas pela Lua e pela artificialidade das luminárias.

Todas as noites são escuras porque são escuras por dentro. Não há noite que não seja feita de breus e obscuridade. São nelas que as sombras descansam no mergulhar cerrado das escurezas. Talvez a noite seja isso: uma enorme sombra a nos encobrir o dia.

Mas a noite não oculta o dia. É o dia que esconde a noite com seu manto azulado pintado de nuvens. Quando o Sol se põe desencobre a noite por detrás do véu que antes a omitia.

No início de tudo, o tudo era um insondável nada. Por não haver nada, não havia também qualquer início, meio ou término. Nada começava. Nada findava, assim como igualmente não havia vida, porque não havia nascimento, e, também, não existia morte, porque nada estava vivo para morrer. Até os deuses antigos para morrerem, primeiro foram inventados por quem um dia esteve vivo. O que seriam daquelas divindades se não houvesse mortais para adorá-los?

A noite como oposto do dia não existia. O que antes somente se tinha era um prolongado eterno escuro. Antes do antes e do depois, tudo era um absoluto nada. Não havia tempo, claro e escuro, dia e noite, Sol e Lua. Apenas coisa nenhuma, uma não existência desalumiada. É assim que nascem a maioria das mitologias, ou, mais precisamente, a cosmogênese.

O demiurgo, ou artesão divino, inicia do nada sua criação. Anterior a tal gênese não existia tempo nem espaço, não existia vida, tudo era um silencioso vazio. E é desse princípio organizador (ex nihilo) que se inaugura a expansão do mais completo e onipresente escuro para vir após a luz. Segundo o Gênesis bíblico, por exemplo, não havia forma e o universo era vazio coberto pelas trevas. E Deus disse: fiat lux (faça-se a luz), e a luz se fez.

A noite originária não é a noite como chamamos a parte do dia em que a luz do Sol se põe. É a noite incondicional. A noite sem a manhã anterior, nem a manhã posterior. É o Caos da mitologia grega antiga, o vazio abismal. E é do Caos que nascem, como pedaços arrancados dele, a Noite (Nix) e a Escuridão (Érebo). E dessas forças primordiais (entre elas também Tártaro, Gaia e Eros, entre outras) que brotam os demais deuses e as estruturas geradoras do Mundo, da vida humana e do Universo.

Antes do início tudo era o mais completo escuro, a total ausência de qualquer coisa, o pleno nada, o repleto vazio. Não havia luz, não havia vida, não havia nenhum ser ou substância. Era somente uma absoluta noite fechada, a total obscuridade. Como, então tudo começou? Ninguém sabe. Só podemos especular, imaginar, conjecturar, teorizar, fantasiar. E, assim, de repente, do nada se principiou algo, e deste algo tudo, aos poucos, começou.

Talvez não tenha sido assim. É bem provável que não deve ter sido tão simples assim. Talvez os gregos estivessem, de alguma forma, certos, ou seja, antes de existir tudo a noite primordial fosse um confuso caos que explodiu, espatifou-se. Dessa explosão, que os físicos chamam de Bing Bang, o Universo foi deflagrado, desabrochou. Será? Ainda não sabemos.

Toda noite, quanto mais escura, mais misteriosa é. A falta de luz ou claridade nos permite ver até o que não existe. O escuro é soturno, sinistro e temeroso. Não é à toa que muitos associam a escuridão com a morte e o morrer. Como escreveu A. Alvarez, escritor, poeta e crítico literário inglês, "existe outra escuridão, a escuridão da morte, a noite que nos pega todos no final, a noite que nenhuma quantidade de luz jamais poderá iluminar".

Porém, à noite também é o espaço do sonho. É quando, conforme o escritor Stevenson, os lampiões se apagam e o cérebro ilumina o seu teatro. Por isso, a noite tem também seu fascínio, sedução, segredos e encantos. Disso sabem bem os poetas. Desse modo, escreveu Cecilia Meireles: "ninguém abra a sua porta/para ver o que aconteceu:/ saímos de braço dado/ a noite escura mais eu". Desse modo escreveu Fernando Pessoa: "acordo de noite subitamente, / e o meu relógio ocupa a noite toda". Desse modo escrevi eu: "estou no centro da solidão da cidade/enquanto a noite debruçada sobre o teto das casas/repousa indiferente ao sono dormente dos quartos".

Não sou eu quem quero a noite. É a noite quem sempre me quer

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 07/06/2022
Reeditado em 07/06/2022
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