MINHA MÃE, MEUS LIVROS E EU.

Tive uma infância boa, permeada de histórias contadas por mamãe. A hora da história era no inicio da noite, mas meus amigos e eu não agüentávamos esperar tanto, depois do almoço lá estávamos nós esperando ouvi-la. Muitas vezes ela queria descansar um pouco, tirar a sesta, insistíamos, ela acabava cedendo, mas antes sempre falava “quem conta história de dia cria rabo de cutia”.

Lembro de todos os personagens, muitos dos enredos já ficaram perdidos dentro da minha cabeça, mas tenho absoluta certeza que fizeram parte da construção do meu caráter. A maneira de contar, transbordando veracidade e magia me fascinava, me enchia de orgulho, era minha mãe.

Quando em alguma parte da história tinha algo duvidoso, de sentido preconceituoso (ex: princesas sempre de olhos azuis, bruxas sempre narigudas e horripilantes) ela olhava pra mim, sabia que eu percebia, esperava eu questionar e eu sempre questionava, ela ria e concordava comigo, mudávamos a história.

Minha mãe me deixou sentimental, depositou sentimentos bons no meu coração, às histórias, indubitavelmente, foi um dos meios que ela utilizou; colocar-se na pele do outro, sofrer com uma dor que não é sua, sentir alívio com a superação de problema que não é seu, transforma qualquer criança num adulto emotivo, que sofre todas as vezes que vê um mendigo, incapaz de entender como toda a sociedade se mostra tão acostumada com aquilo.

Fui crescendo, as histórias contadas começaram a rarear, me lembro com nitidez quando minha mãe dizia: “chegará o dia que tu não vais mais gostar de história para criança, é natural” eu jurava que isso nunca iria acontecer. Porém como sempre ela estava certa, elas já não me fascinavam tanto, não lhe disse isso, mas também não lhe pedia mais histórias. Nesse momento começou uma nova fase da minha vida, com dez anos passei pra quinta série, precisava estudar na cidade. Saí de onde me sentia segura, até ali a escola ficava dentro da minha casa, que alias nem era nossa, e fui para o colégio desconhecido e uniformizado. Foi nesse período que adquiri o fascínio pela leitura, outra contribuição das histórias de minha mãe, descobri que eram nos livros que eu encontrava aquele mundo maravilhoso que tanto gostava. Comecei a emprestar livros da biblioteca, dos meus amigos, ainda todos tinham enredos fáceis e gostosos, a exemplo de “O gênio do crime”.

Virei devoradora de livros, terminava um já emprestava outro, comecei a arriscar em alguns mais difíceis, gostei também. Resolvi ir além, li “O uruguaia” não entendi nada. Enveredei para os livros de José de Alencar, na minha escola tinha a coleção dos romances dele, ainda guardo a fisionomia da virgem dos lábios de mel, o caráter de Fernando Seixas, a beleza de Aurélia, a pureza de alma de Lucíola (quer dizer, Maria da Glória), o casamento de Mário com Alice, a ingenuidade e devoção de Peri...

Descobri Machado de Assis através de Dom Casmurro, depois veio Helena, Memórias Póstumas de Braz Cubas, Quincas Borba, histórias da meia noite. Ler Machado de Assis é indescritível, o autor conversa com a gente, parece que até mesmo ler nossos pensamentos, indescritível de tão maravilhoso.

Conheci Rachel de Queiroz com a inesquecível, fascinante e totalmente envolvente Maria Moura; chorei lendo O quinze escrito também por essa brilhante autora. De Jorge Amado degustei Gabriela Cravo e Canela, com todo seu aroma e sensualidade.

Outro livro que me marcou, fora Pollyanna, que me ensinara cuidadosamente o jogo do contente, uma dívida que de gratidão que tenho com Eleanor H.Porter.

Gosto de ler e sempre vou gostar. Ler é soltar a imaginação, apurar a sensibilidade, assim como minha mãe fazia comigo contanto suas belas histórias. Hoje tenho plena consciência de como minha mãe me educou, qual tática usou, e agradeço-a por tudo: pelas histórias, pelo carinho incomensurável, por sempre ter acreditado em mim (muitas vezes mais do que eu), por ter me aberto o mundo do maravilhoso, por ter me ensinado a ler, por ter lido comigo, por ter sido companheira, professora, por ter sido mãe.