Não que goste de ouvir conversa alheia. Valha-me, Deus! Mas não posso ser indiferente ao dom que me foi dado: orelhas grandes devem ser um sinal espiritual de escuta (ao menos minha mãe me disse). Pra quê mais serviria esse "trambolho na cara" senão para isso? Dumbo foi o único escolhido pelo universo pra fazer sucesso com volume, artista de cinema com liderança de bilheteria, a maioria, lota os consultórios de cirurgia plástica. Mas, enfim, além do tamanho da orelha, que diga-se de passagem é bem "saidinha", numa consulta ao oftalmologista descobri que tenho 112 por cento de audição no esquerdo e 108 no direito. Não posso negar minha hiperacusia, logo...

 

Cá estou no açougue. Não sei vocês, mas adoro uma inauguração. Sei lá, dá uma sensação de renovação, de possibilidade de sucesso. Um "up" social de alguém tentante. Olho pro proprietário e vejo um balão imaginário: "Que bom que você acredita!" Dou-lhe um abraço apertado e confirmo: Parabéns pelo empreendimento que será um sucesso!

 

Mas como nem tudo é "fotografia profissional" tem fila. Aliás, o povo brasileiro adora uma. Sempre aparecem os curiosos perguntando: Mas essa fila é pra que? No meu caso, valorizar o produto ofertado, mesmo que sinta uma certo incômodo no rim. Vocês me entendem, certamente...

 

A décima sete contando com os olhos. Na minha frente, duas mulheres. Ambas de cabelo elevado. Uma de coque nada conceitual, outra de rabo de cavalo. Os cílios asa-delta era uma atração à parte... A aerodinâmica ali foi atrapalhada pelo peso do corpo. A física é mesmo uma matéria inexplicavelmente criteriosa. Na parte superior da face uma linha circular muito semelhante a um dos lados do arco usado para atirar flechas. Na boca um volume bem exagerado, tipo bumbum de babuíno, já viu? Seriam irmãs pela semelhança entre os desenhos do rosto, se não fosse o poder acusatório da genética: uma com silhueta de violão, outra de palito; além da cor e do aspecto do cabelo. O que não vem ao caso, afinal, o assunto delas é a cereja do bolo. Além do mais, todo mundo é parecido depois da harmonização facial (só temo pelos que tomaram a vacina da Pfizer pra covid, que tenham mais sorte que a Joelma do Calipso).

 

- Viu só a Melissa. Marido daquele: bonito, rico, educado, politizado e ainda teve coragem de trocá-lo por aquele pivete levantador de peso, um servente mais qualificado, instrutor de academia.

- Mas até que ele é uma partidão, Samira. Já viu o abdômem dele... Cada músculo. Só músculo sarado...

- A Santinha do pau oco vivia levantando ferro e agora está ferrada. E pior, continua frequentando a academia. Devia ter vergonha. Onde já se viu?

- Vai ver o marido não "dava no couro" e a coitada queria uma extravazada. Entre quatro paredes é que conhecemos as pessoas verdadeiramente. Não julgo.

- Mas como pode, uma mulher que vivia na academia, dia e noite, suplemento daqui, suplemento dali. Silenciosa, discreta. Ninguém haveria de pensar que ela seria capaz de trair o marido e pior, no vestiário da academia. Aquelas fotos da "perseguida" que estão nas redes sociais são um disparante para os filhos verem...

- Mas você nem tem filhos?

- Mas falo dos filhos  dos outros...

-E agora todo marido vai achar que mulher na academia é sinal de traição...

- Mas você nem tem marido.

-E aquela pouca vergonha daqueles... Daqueles l a b than than than à mostra. Parece uma Dionéia aberta.

- Aposto que mais fechada que a sua língua, Samira. Para de falar disso. Olha a espuma saindo no canto de sua boca. Deve ser inveja.

- Queria ver se fosse seu marido. 

- Bem, Samira. Pra ser meu marido teria que ser eu, não?

- Engraçadinha. Adora uma piada. Não estou de brincadeira. Isso é totalmente contra os meus princípios. Acho uma pouca vergonha.

 

A fila andou e chegou a hora da moça.

 

- Próximo. - disse o acougueiro.

 

As mulheres sem perceber continuavam a conversa.

 

- Eu quero um músculo daquele. Saradão... Falou Cibele, rindo.

 

O acougueiro pensando se tratar de um pedido. Cortou a carne, empacotou-a e querendo atrair a atenção da moça, gritou:

 

- Saindo o músculo sarado. Mais alguma coisa, senhora.

 

- Você está louco. Não pedi músculo. Ainda mais sarado. Pode cancelar o pedido. E pode me chamar de você, por favor.

 

- Uai moça, pensei que estava falando do músculo dianteiro. Nessa onda de vida fitness suspeitei que queria uma carninha fibrosa, saborosa, pobre em gorduras e rica em colágeno. Toda mulher gosta de um colágeno, não?

 

- Pensando bem, quanto é? Vou levar o músculo sarado. "Mais vale um na mão do que dois voando." Eu levei ferro e ainda estou no lucro.

 

E Samira saiu do açougue se benzendo, afirmando baixinho que Cibele era uma pervertida.

 

Chegou a minha vez de pedir e rindo, falei:

 

- Pode ser costela...

 

- De Adão não tem, viu... - disse o acougueiro, rindo.

 

No fundo, aquele moço era inusitado.  Parecia ter ouvido a conversa. Como? Não sei...

 

E as filas são mesmo o melhor lugar do mundo pra bois, chifres e enredos.

 

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 06/06/2022
Reeditado em 06/06/2022
Código do texto: T7531999
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