SEM EIRA E NEM BEIRA
Não quero ser feliz. Quero ter uma vida interessante!
(Contardo Calligaris)
Nos últimos tempos cantarolava a composição de Rita Lee – “Nem Luxo e Nem Lixo”, e foi por conta da letra que tomou a iniciativa de botar o pé na estrada. Até decidir passou por mil provações, precisou ver filmes e livros das décadas 1950 a 1960. Foi beber nas vicissitudes e realizações do Movimento da Contracultura, focando os Beatniks.
O termo “Beat” em seu sentido literal é “Cair Fora”. Beat, beat, beat soava como mantra e lhe dava forças para sonhar e planejar sair de sua cidade, de seu modo de vida, de seu círculo de conhecidos e amigos. Dava vazão ao inconformismo com a situação do mundo, de mudar de lugar, de ritmo, de curtir outro espaço e se afastar dos esquemas consumistas das megalópoles globais.
No século anterior as posições contrárias ao status quo davam-se também no plano cultural com os setores médios que optavam pelo underground com os Beatniks, Hippies, Punks e Anarquistas, este último desde o século XVIII e XIX junto aos primeiros movimentos operários na Revolução Industrial. Agora tudo era mais inorgânico, um culturalismo à la classe média, que apelava para a inclusão ao sistema através do empreendedorismo e empoderamento dos segmentos identitários. Esta vibe de fé em mudanças num capitalismo excludente não estava em seus planos de virada de mesa. Queria mesmo um esquema Zen, mais contemplativo.
Voltava à canção – “uma pessoa comum/ Um filho de Deus/ Numa canoa furada/ Remando contra a maré”. Um homem de meia idade, que perdeu tudo que tinha: casa, mulher, filhos que somem depois que empobreceu. Queria dar a grande virada para o desconhecido, dispondo de pouca grana e vontade de aventurar-se pelo Brasil afora, com a cara e a coragem, trabalhando nas pousadas de caminhoneiros, e restaurantes de beira de estrada. Cozinhava bem e não tinha medo de pegar trabalho pesado.
Mas, para onde ir? Qual a rota mais favorável para dar esta guinada radical de andarilho, só com uma mochila nas costas e uns trocados de emergência? Era um projeto perigoso que incluía violência nas estradas. Tinha que parar sempre que pudesse para encontrar um bico de sustentação do dia-a-dia. Confiava em seu signo do horóscopo chinês, o misterioso CAVALO, autossuficiente, inconstante e o mais nômade do zodíaco. O clima do Nordeste era melhor que o Sul. poderia ficar na rua, ao relento. Andando ou pegando carona se desse tudo certo, seguiria até Salvador, e depois Aracajú. Quem sabe nesta cidade poderia viver da pesca, junto ao rio Sergipe ou ao rio Vaza Barris, vivendo da pesca? Em contato com a natureza, com a camaradagem dos pescadores, jogando a rede no mar, e dormindo com o céu estrelado, protegido pelo casco das canoas.
Até isso podia ser uma ilusão de paz e tranquilidade. Mas, o que vale a vida se não podemos sonhar? Sem pensar que tinha saída, o melhor era ficar na rua a esmolar esperando a hora de morrer. Contra esta expectativa iria rumar para o Nordeste, mentalizando a certeza de que “o sol era para todos”.
Saindo do Rio, com a companhia do seu radinho de pilha, ouviu a noticia de uma nova chacina na Vila Cruzeiro, no subúrbio carioca, com vinte e cinco mortos. A última matança foi em 2021.O governante anterior caiu por corrupção, mas a sua estratégia permaneceu com o substituto, outro neófito, que manteve a política de “criminalização da pobreza”. Nos espaços de moradia das pessoas de baixa renda, ao invés de operações de inteligência que preservem a vida de moradores e traficantes, preferem seguir com operações de confronto e extermínio. Esta estratégia leva à morte jovens “aviões”, que servem de “bucha de canhão” para o massacre indiscriminado da população.
Este é um contexto de luta de classes entre a polícia, o aparelho repressivo do Estado, contra a mão de obra dos moradores e narcotraficantes de origem popular. Todos convivem no mesmo espaço. Um potencial explosivo que leva o aparelho ideológico do Estado a tomar medidas que dividem não só a população em conflito, mas todos os habitantes da cidade. A maioria consente pelo medo e a alienação que “bandido bom é bandido morto”. Com a crise econômica, sem organização popular e pressão dos movimentos sociais nas ruas, o pobre fica cada vez mais longe do herói mítico Robin Hood (séc. XI), e mais próximo do filme de Hector Babenco – “Lúcio Flávio, O passageiro da agonia” (1976). A vida de um assaltante de Banco na época da Ditadura Militar, onde a polícia acobertava o “Esquadrão da Morte” formado por policiais corruptos e agentes do Judiciário. Este filme com Reginaldo Farias foi censurado pelo regime militar.
Enquanto fazia a caminhada, outra noticia macabra o deixou bem abalado: o assassinato de Genivaldo, um rapaz de Sergipe que teve morte brutal, asfixiado por gás lacrimogêneo no porta malas do carro de polícia rodoviária federal. Um crime na estrada feito por policiais. Até a ONU pressionou em prol dos Direitos Humanos! Teria de se apressar caso quisesse ficar livre dos problemas mais graves que a cada dia eram despejados aos borbotões na cabeça da população.
Tornou a pensar no mapeamento da região, revendo os lugares em que iria passar e onde ficaria mais tempo para descansar e ganhar alguns trocados. Nada de entrar em cidades médias, buscava os espaços que tinham preservado sua tradição. Não queria cair nas fazendas de empresários agrícolas. Viu que a região do Oeste Baiano era o Centro do Agronegócio como a cidade de LEM (Luís Eduardo Magalhães) filho do político e oligarca Antônio Carlos Magalhães (ACM). Nem Oligarquias e Nem Cidades Turísticas. Queria fugir da onda ufanista do Brasil das Commodities. A propaganda, da década de 1970 “Este é o País que vai para Frente”, lembrava a expansão atual do agronegócio;” O Agro é Pop. O Agro é Tech. O Agro é Tudo.” Sinalizando o campo como eixo atual da riqueza produtiva. Só queria distância destas “bolhas de prosperidade”.
Em uma viagem +existencial em busca de iluminação e fé na vida, tudo podia acontecer. De início quase caiu na vontade de rever o extremo sul da Bahia: Alcobaça, Caravelas, Prado e, no Sul, Porto Seguro e seus vilarejos, Arraial da Ajuda, Trancoso e Caraíva. Cidades históricas da época do descobrimento do país. Hoje são chamariz turístico. Desistiu do desvio de percurso por tomar tempo e esforço físico. Seguiu o plano original, o percurso da BR 101. Chegou a se emocionar quando viu as plantações de cacau dentro da mata e tão perto do barulho da estrada. Olhava tudo ao redor com os pés no chão, muito melhor que ver a paisagem dentro do ônibus
Carona nem sempre conseguiu, mas contou com a boa vontade de poucos caminhoneiros que paravam para ele. Chegando perto de Salvador fez um balanço de sua aventura. Muita canseira e tensão, com ótimos lances de solidariedade. Refletiu sobre sua opção e viu que fez a coisa certa. On the Road foi mesmo uma sacação genial!
Chegando em Salvador fez uma parada mais longa, pois iria contatar seus amigos. A amabilidade, alegria e disponibilidade dos baianos e nordestinos eram reconhecidas por todos os brasileiros. Não conhecia povo mais prestativo e hospitaleiro. Estava precisando de aconchego. Próximo da meta final da viagem foi surpreendido pelo convite do amigo para ir de carro até Aracajú, pela Linha Verde ou Estrada do Coco. Tinha tirado a sorte grande! Fez um pedido especial, rever o Castelo Garcia D’Ávila, da época das Capitanias Hereditárias (1549), e almoçar em casas de pessoas que viviam à beira da estrada. Além da comida típica, podíamos curtir a casa e o quintal.
Chegou à Aracaju pela travessia da ponte que liga o município à capital, separados pela água da foz do rio Vaza Barris. Só faltava mesmo ir direto ao Mercado Municipal, comer cuscuz de milho com ovo estrelado por cima. Por lá, foi avisado que deveria trabalhar no famoso Festival do Caranguejo, em agosto e setembro. Uma boa dica, pois o crustáceo é o principal prato da culinária sergipana.
“Não quero luxo e nem lixo. Quero gozar no final”. Saiu sozinho enfrentando os desafios. Conectou-se com o filme “Easy Rider” (1969) sobre a violência e a intolerância na viagem, mas o seu caso foi bem-sucedido. Porém, desconfiava que a tendência a fugir das metrópoles ia aumentar, e sem a garantia de sucesso na liberdade de ir e vir. O caso Genivaldo, nas estradas de Sergipe, poderia ser regra, e a sua jornada vitoriosa uma exceção. Nunca esqueceria do massacre vivido pelo povo da Vila Cruzeiro, no subúrbio carioca, visto como uma metáfora da sociedade se defrontando com o “mal absoluto”. No fundo todos agem como o avestruz, com medo da violência entre as classes sociais. Ele também se sentiu encurralado e foi atrás da sua rota de fuga. Os bandidos da Vila Cruzeiro tentaram fugir pela Estrada da Misericórdia, e morreram. Ele, buscou a Estrada da Esperança com a crença de que dias melhores viriam.