Baleia

Imagine um cão. Uma fêmea. Sendo levada de um local para outro do globo terrestre de avião.

Uma cachorra num avião? Nada mais comum. Acontece todos os dias no mundo todo. Mas imagine que estamos em 1964. Isso seria... Menos comum.

A Ditadura Militar havia acabado de ser instaurada no país. Mas não vamos falar de militares. Vamos falar de uma cachorra e de porque ela acabou embarcando numa avião quase 50 anos atrás.

Não é fácil ser cachorro sem dono. Imagine: aguentar frio e fome. Ficar doente, com sarna e pulgas sem alívio. Ser enxotado por humanos e atacado por outros cães. Até um dia ser atropelado ou enlouquecer, espumando pela boca enquanto morre.

Uma cachorra sem raça definida estava descansando debaixo de uma barraca no mercado quando viu aqueles homens se aproximarem. Por instinto, fugiu deles. Quando estenderam os braços para agarrá-la, rosnou, tentou morder. Mas por fim, se deixou pegar. Eles não pareciam ter más intenções. Mas ela não sabia o que a aguardava.

Aqueles homens estavam fazendo um filme: Vidas Secas.

A primeira coisa que fizeram foi dar a ela um nome: Baleia. Isso a surpreendeu. Nunca antes ela tinha sido chamada por um nome próprio. Isso era bom. Se deram nome é porque gostam de você. Vão cuidar de você.

Foram dias felizes. Ela era levada para vários lugares estranhos, secos, desabitados, para as filmagens. Fazia o que esperavam dela, e ganhava petiscos. Não passava mais fome ou sede. Fez amizade. Atores e equipe brincavam com ela.

Logo chegou o dia de filmar a sua última cena. Baleia morreria. Levaria um tiro. Usaram linha fina de costura para amarrar à cauda uma de suas pernas traseiras, para que mancasse. Passaram nela uma pasta estranha, para simular o ferimento do tiro. Isso tudo a incomodou. A equipe estava filmando em uma fazenda desolada. Baleia estava deitada debaixo de um carro de boi. O sol ia nascendo, a luz começou a ofuscar seus olhinhos, que foram gradualmente se fechando. Cinegrafista e diretor sorriram satisfeitos. Baleia tinha morrido com perfeição.

Infelizmente não há mais nada que possa ser contado sobre a cachorra que interpretou Baleia. Gosto de imaginar que naquele nascer do sol, no momento de sua morte no filme, começou para ela uma nova vida. Gosto de imaginar que viveu feliz por muitos anos depois, cercada de pessoas que a paparicavam.

Na verdade ainda há um episódio a ser contado. Após a estreia, algumas pessoas, impressionadas pelo realismo da cena da morte, criaram polêmica: teria a produção matado de verdade um animal? Há quem acredite nisso até hoje. Quando o diretor recebeu o convite para ir ao Festival de Cannes com sua equipe, aproveitou a oportunidade para levar Baleia e mostrar que ela estava viva e bem. Então Baleia, a vira-lata de Palmeira dos Índios, foi à França, de avião.

Baleia provavelmente chegou mais longe e mais alto do que qualquer cachorro vira-lata de Palmeira dos Índios. Tão alto que virou estrela.

Renan S F Almeida
Enviado por Renan S F Almeida em 06/06/2022
Código do texto: T7531766
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