Um leão chamado Victor Hugo
Se existe uma velhice que se possa chamar de assombrosa, essa é a de Victor Hugo. Não só a velhice a vida inteira do poeta parece extrapolar limites humanos.
Impressiona, de cara, a quantidade de textos entre poemas, romances, cartas, peças, artigos, discursos e diários escritos desde o começo precoce aos 15 anos, até quase o final, aos 81 anos. Também deixou um legado de milhares de desenhos e pinturas, depositados em um museu especial.
Vargas Llosa, outra máquina de bem escrever, calculou que levaria 10 anos de leitura ininterrupta para dar conta de tudo o que o poeta escreveu com fina verve literária. Os cansados biógrafos, chafurdados em montanhas de papel, estão sempre a revelar novas facetas de Hugo.
O leitor logo imagina um ser enclausurado em uma sala por toda a vida, fatigando penas e esvaziando tinteiros a revolver a mente e a imaginação, pois só em tal empenho daria conta da produção avassaladora.
Mas não. O porta voz do romantismo extravasou a vida por onde andou. Exerceu inúmeros papéis e mais do que símbolo nacional seu nome colou ao século em que viveu. O biógrafo Graham Robb logo na primeira frase de seu livro destaca a onipresença do poeta: “Por onde quer que se olhe o século XIX, há um Victor Hugo”.
Exímio construtor de metáforas, afirmou aos 76 anos, ser obrigação moral do escritor dar à posteridade pleno acesso às cozinhas desarrumadas que produziram sua obra, mas ele fez mais, deu acesso aos segredos das alcovas, ao anotar no diário nem tão secreto, as atividades libidinosas.
De fato, a vida sexual é um capítulo à parte na biografia do poeta, aliás, mais que um capítulo, um livro, e este já foi escrito com o título “Hugo et la sexualité” pelo professor Henry Guillemin.
Manteve uma amante oficial, a atriz Juliette Drouet por toda vida, mas a quantidade de suas proezas amorosas impressionaram os biógrafos (Llosa os chamou de voyeurs). No melhor estilo parisiense, alugava apartamentos com nome falso para os encontros amorosos com amantes.
Democrático na cama, fazia amor com atrizes, marquesas e criadas, na idade provecta preferia as últimas, mas nunca se separou da esposa Adele Foucher que, por sua vez, foi amante do escritor Sainte-Beuve.
Os voyeurs descobriram que eram frequentes as escapadelas do velho pela porta dos fundos, em excursões amorosas. Aos 83 anos, pouco antes de morrer saía às escondidas para se encontrar com uma camareira.
Quando privado de sexo, consta na biografia, batidas sobrenaturais como espelhos se quebrando, enchiam a noite. Tanta energia era admirada pelos franceses como símbolo da vitalidade nacional.
O pai de Quasímodo e Jean Valjean, um gênio egocêntrico e ávido de glória, é um exuberante exemplo de velhice bem sucedida. Na verdade, é difícil encontrar sinais de velhice na trajetória ascendente de Hugo, ao contrário, nos últimos anos ele excedeu em vitalidade e imaginação.
A confirmação vem de seu próprio ânimo: “Na minha velhice há uma eclosão”, e da observação de amigos “O velho homenzinho está mais jovem e mais encantador do que nunca”, anotou Flaubert, em 1877. Uma saúde de ferro o ajudou, sofreu leve derrame aos 78 anos que não abalou suas atividades e uma pneumonia aos 83 anos, que o levou à morte.
Espírito aguerrido em defesa dos ideais republicanos e revolucionários, que varreram a Europa em 1848, o velho ganhou o sugestivo apelido de Leão.
Um leão ávido de conquistar novos territórios. Não contente com os limites da realidade, abriu as portas do além e as manteve aberta por dois anos.
Em 1851, ao se opor ao autoritarismo de Napoleão III e ser perseguido pelo tacão do poder, o escritor mais famoso do mundo fugiu para o exílio e lá permaneceu por quase 20 anos.
Em sua casa de exilado chamada Marine Terrace, ilha de Jersey, recebeu em 1853 a visita da amiga Delphine de Girardin que chegou com novidades de Paris: as tais mesas falantes. Hugo ficou interessado, pensava em se comunicar com o espírito da filha Léopoldine, falecida em 1943 aos 19 anos, grávida, em naufrágio do barco em que passava a lua de mel.
Madame Girardin providenciou uma mesa adequada aos espíritos, pequena, leve, com três pés e começaram os trabalhos. Uma batida do pé da mesa no chão representava a letra A, duas a letra B e assim por diante.
Por vários dias a mesa, interface analógica entre viventes e mortos, se manteve calada, mas em 11 de setembro de 1853 deu o primeiro sinal de vida, ou melhor, de espírito. Léopoldine se manifestou e teve um breve diálogo com o pai emocionado.
A partir daí os mortos faziam fila para conversar com o anfitrião, entre eles Caim, Moisés, Sócrates, Joana D’Arc, Mozart, Maomé, Shakespeare, Alexandre, Jesus Cristo e seres mais improváveis como uma fada que dizia falar em Assírio, um habitante de Júpiter chamado Tyatafia, Androcles e seu amigo leão falando em leonês e até a bíblica jumenta de Balaão teve um dedo de prosa com Hugo.
Em resumo, o poeta preencheu 4 cadernos com as palavras soletradas pela mesa falante, mas exigiu, com medo de serem incompreendidas, que fossem publicadas só após sua morte.
Desse intenso contato com “seres que povoam o invisível”, o visionário criador de mundos literários e políticos, se inspirou para também inventar uma religião, tendo como pilar central o fato de que todo o universo é senciente, “tudo está cheio de almas” e que estas sobem e descem a escada universal, migrando para outros organismos. E uma profecia: o universo segue lentamente para a transfiguração final, impelido pela misteriosa força do amor.
Ao estudar as transcrições, o biógrafo Graham Robb ficou impressionado com alguns fatos inexplicáveis, por exemplo, de como a mesa poderia soletrar ideias, versos e até o título final de “Os Miseráveis”, conhecidos apenas por Hugo.
No Brasil o “Livro das mesas”, com 600 páginas, foi publicado em 2018 com elogios da crítica, considerado por muitos obra prima do inconsciente de Victor Hugo, de fato, o que os espíritos jorraram do além foram textos primorosos, mas todos com estilo literário demasiado hugoniano.
Ao retornar do exílio em 1870 foi recebido como herói por uma multidão em Paris que comemorava também a república. Estava com 68 anos em intensa atividade política e escrevendo sem parar. Ao se eleger senador pela primeira vez, exultou: “Senhores, tenho 74 anos e começo minha carreira”, de fato, foi reeleito aos 80 anos.
A apoteose da vida de Victor Hugo aconteceu na celebração de seu 79o aniversário em 27 fevereiro de 1881. Nesse dia Paris e o mundo ocidental prestaram o maior tributo público da história a um escritor vivo.
A procissão começou num domingo ao meio-dia, um mar de flores primaveris e bandeiras tricolores nas avenidas contrastava com rajadas de neve. Algumas horas depois, 600 mil pessoas viam o "avô absoluto” sentado numa janela da casa na Avenue d'Eylau, ao som de “La Marseillaise" executada por 5000 músicos.
Quatro anos depois no leito de morte proferia uma série de "últimas palavras” logo levadas ao público delirante aglomerado em frente ao hospital. “Ah! como é difícil morrer. Eu estava pronto”; “Aqui está o fim, meu coração está morto”; “Estou bem. É a morte”; “Eu fecharei meu olho terrestre, mas o olho espiritual permanecerá aberto”.
Encarou com tranquilidade a morte, “verei Deus”. Para quem já conversara e fora elogiado pelo Filho, morrer era o caminho mais curto para o esperado tête-à-tête com o Pai.
No dia 1o de junho de 1885 aconteceu o “funeral mais notável da história do mundo”, noticiaram os jornais da época. Havia mais pessoas no saimento de Hugo que a população normal de Paris.
Várias carruagens, verdadeiras obras de arte cobertas de flores desfilaram nas avenidas de Paris e entre elas…um caixão enegrecido dentro de uma charrete humilde (corbillard des pauvres) puxada por dois pangarés de triste figura. Hugo “esvaziou o mundo” acenando aos pobres. O cortante Nietzsche estava lá e não perdoou: “Uma orgia de mau gosto e autoadmiração”.
O biógrafo Graham Robb se referiu ao poeta como “o caso mais lúcido de loucura da literatura”, pode ser, de poeta e de louco…Victor Hugo tinha muito. Mas lucidez e loucura são estados que não explicam o gênio que desejava viver 200 anos para colocar tudo no papel.