Dias úteis
Meu velho dicionário de papel, embora quase inútil no mundo digital, ainda sabe definir direitinho o que é "útil". Idoso de 25 anos (foi publicado em 1997), não esconde a satisfação de ser procurado. Com orgulho professoral, diz "eternamente" (pois suas palavras estão presas no papel) que "útil" é um adjetivo. Depois, apresenta quatro definições, didaticamente numeradas. Agradeço as três primeiras, mas só me é "útil" a quarta: "dia em que se trabalha". Esforçando-se para mostrar toda sua utilidade, o sábio de papel, ainda informa, antes de ser fechado, que o plural é "úteis". E frisa em itálico. Deve ter alguma utilidade esse destaque.
Devolvo-o respeitosamente a seu cantinho na estante. Certamente, demorará algum tempo para ser incomodado outra vez.
Penso no que o dicionário me informou - e não vou duvidar, afinal ele é um sábio - e penso na vida. Os dias úteis encolhem a vida. Se ela fosse cortada em quatro partes, três seriam jogadas no lixo da inutilidade.
Pergunto ao Google, esse tal de muitas utilidades, quantos dias úteis tem um ano. Mais rápido e eficiente que o dicionário de papel, que não saberia me responder, o Google afirma, sem pestanejar, que são 252 dias. Essa é uma média, evidentemente, pois tem os anos bissextos, diferenças na quantidade de domingos e feriados... Mas a resposta me basta.
Úteis são os "dias em que se trabalha". E quando se começa a trabalhar? Certamente, antes de entrar, efetivamente, no mercado de trabalho, já se prepara para ele. Ou seja, estudar não é, propriamente, trabalho, mas os anos de estudo fariam parte da “utilidade da vida” – já que a escola prepara o estudante para uma profissão.
Pois bem, imaginando que uma pessoa viva 90 anos, que tenha entrado no mundo da produção aos sete (via escola, como estudante) e tenha sorte de se aposentar aos 65, será "útil" por apenas 59 anos. Os 31 anos que sobram correspondem aos seis da infância e aos 25 de aposentadoria. Em 59 anos, viverá 21.535 dias. Mas nem todos serão úteis.
O Google ensinou, há algumas linhas, que um ano tem 252 dias úteis. Assim, 59 anos terão 14.868 dias que prestam. Os 6.667 excedentes ficam lá no meio do caminho, de braços cruzados, sem saber pra onde ir, estorvando a correria cheia de razão dos dias úteis.
Se colocados juntinhos, os 6.667 dias inúteis que atravancam os dias úteis, formam uma pequena montanha de 18 anos e 3 meses. Deixemos só os 18 anos e varremos o pó dos 3 meses para debaixo do tapete da inexistência.
Descontando esses 18 anos, já não temos mais 59 anos úteis e, sim, 41. O idoso de 90 anos foi inútil por 49 anos, a maior parte do tempo.
Acontece que mesmo o dia útil não é, por inteiro, útil. A utilidade está no horário comercial, das 8h às 18h. Vamos acrescentar a isso duas horas pra cima e duas pra baixo. É o tempo, por um lado, para a pessoa acordar, sair de casa e entrar no dia útil e, por outro, para sair do dia útil, entrar em casa e se inutilizar domesticamente. Há, então, em um dia útil, 14 horas efetivamente úteis.
As dez horas que "fugiram do relógio" e que estão ali, balançando-se, indiferentes, na rede da inutilidade, acumulam-se semana a semana, mês a mês, ano a ano, até perfazerem, ao longo dos 41 anos que se pretendiam úteis, o total de 149.650 horas ou 6.235 dias ou 17 anos inúteis.
Restaram, assim, 24 anos verdadeiramente úteis em uma vida de 90 anos. Sobram 66 anos para serem descartados. Não prestam pra nada, não produzem riqueza.
Nessa lógica, para se ter uma vida enxuta e totalmente plena de utilidades, precisamos metade da metade do que vivemos. Um quarto nos basta, um "quarto de despejo" (com a licença da Carolina Maria de Jesus).
Mas prefiro a inutilidade dos dias inúteis. Não me refiro apenas aos que ficam às margens da definição do dicionário de papel (útil é "dia em que se trabalha"), mas a todos os dias que abrem a gaiola do necessário, da prisão do aqui e agora. E não quero recicla-los, trazê-los de volta à utilidade do consumo. Não. Prefiro-os esparramados no gramado do tempo, encharcados ou secos, saltando em liberdades de chuva ou de sol.