Peguei aleatoriamente um livro na estante. Cada qual foi colocado ali como peça de um quebra cabeças, revelando uma parte da história da vida. Não tenho muitas fotografias, logo, os fatos históricos estão nas fontes que carrego na mente.
Não costumo me apegar à bens materiais de qualquer natureza, mas os livros, ah os livros, são uma parte de mim que não tem substitutos, se é que me entendem.
Na contracapa uma mensagem de uma amiga do ensino médio que pertencia à doutrina restauracionista -"Deus, Elohim, é o Pai que pode gerar a glória a partir de seu Filho. E o tempo é curto para reconhecê-lo. Não o perca".-
O tempo é tão curto que queria emendá-lo com retalhos de sentimentos nobres. Ou quem sabe pedir para esticar seus dias como a mulher elástica dos quadrinhos?
Coloquei o livro no lugar e busquei com o olhar outro que pudesse resgatar algo perdido.
E lá estava a primeira gramática da língua portuguesa que me foi dada como presente. Na página central uma mensagem nada convencional: "Se degustar demais, estraga". A língua portuguesa é uma mãe controladora, mas seu conteúdo é um presente.
Avistei de baixo um livro de receitas de minha avó, falecida quando ainda era uma criança.
Ao puxar a escada para alcançá-lo, a emoção tomou-me: o coração acelerado, as mãos trêmulas, o ar em falta. Vovó dizia que a energia das coisas nos raptam antes de nos darem sentido... Deve ser isso. Ao abrí-lo, uma constatação: amores só são doces e perfeitos em receitas de vó.
Teimosa, tentei encaixar o livro na prateleira abaixo e para minha surpresa, caíram todos e ela se rompeu.
Fiquei imóvel, por um segundo. Quantas vezes tentei me encaixar onde não cabia e forcei pra dar certo. A inocência demora vestir armadura de aço. Em tudo em que é preciso usar a força, não cabe: isso vale pro sapato, pra roupa nova e para os relacionamentos de qualquer natureza...
Tentei arrumar a prateleira, mas as habilidades manuais da família ficaram por conta da minha irmã, tão prendada que parece fada. Queria ter coleções de amigurumis, mas os dedos nervosos não ajudam...
E com um pano úmido na mão, sigo firme na expectativa de limpar a estante. Sem esperar contudo, que as prateleiras suportem o peso das minhas más escolhas.