Cozinhar, um ato de amor.
                            
         “Cozinhar é o mais sagrado ritual. No ato de transformar o alimento estamos também nos transformando. Claro que nem toda pessoa que cozinha passa por esta transformação. As pessoas transformaram o ato de cozinhar num sacrifício e o fazem geralmente com sentimentos de ódio, tédio e não lhe dando  a atenção necessária. Isso resulta num alimento que nos causa mal, que nos provoca tristeza, e nos sentimos pesados.Esse alimento não traz em si nada mágico, é um amontoado de massa que digerimos sem nenhum prazer.”
                             (FRAZÃO, Márcia. A cozinha da bruxa, pág 20, RJ;Bertrand Brasil, 1977)



                Se, para muitas mulheres, a cozinha é o símbolo máximo da opressão, na minha vida a cozinha é o símbolo do prazer, da alegria de  receber amigos, de transformar, de criar, de ser feliz com o que há de mais simples e prosaico: o ato de preparar uma comida.
               Desde menina aprendi a lidar com a cozinha, embora não   soubesse. Sempre estive às voltas com as panelas e, por absoluta necessidade, assumi muito cedo a responsabilidade de alimentar meus irmãos menores e a mim mesma. Esse início que parece traumático, deu-me a exata noção de que, primeiro, precisava aprender e, segundo, não era nenhum sacrifício fazê-lo.
              Não sei se aprendi, mas sempre encarei com prazer a tarefa de ir à cozinha. Houve um tempo em que vários irmãos e eu morávamos juntos e, voluntariamente, sempre escolhia cozinhar, na divisão dos afazeres domésticos. Tempos depois aprendi com meu companheiro alguns truques culinários, pois em sua concepção, o que eu sabia fazer bem na cozinha era atrapalhar.Teve a paciência  amorosa de ser  professor, ser cobaia e finalmente se surpreender com a discípula que superou o mestre.  
             Gosto muito de cozinhar. Gosto da sensação de escolher ingredientes, combinar temperos, molhos, organizar os acompanhamentos, os detalhes na hora de servir. O ato de cozinhar tem sido um prazer único, por vezes egoisticamente saboreado. Durante a semana, quando não tenho compromisso a noite, esforço-me para chegar a tempo de fazer o jantar. Apesar de cansada, preparar nossa comida tem sido um momento de relaxar, de esvaziar a mente das preocupações, refletir sobre questões que aparecem sem a necessidade de estruturar ideias ou elaborar diálogos.
             Medito enquanto cozinho. Respiro, mentalizo o prazer de estar alimentando a fome física e material, minha, dos meus e da minha presença em casa. Amorosamente organizo meu ritual: defino o cardápio, separo os utensílios, escolho os ingredientes e envolvo-me na aventura de sabores e aromas, uma festa para todos os sentidos.
            Quase sempre alguém aparece, querendo saber “o que está cheirando aí”. Respondo que é surpresa, que aguarde, e despacho o curioso, lembrando-o que dentro em pouco, o prato estará à mesa, pronto para ser devorado. Saboreio o prazer da comida recém-saída da panela, fumaça perfumada produzindo saliva, antecipando o prazer da degustação. Penso também em quantas mulheres ou homens experimentam esta alegria realizando uma tarefa tão banal. Sim, porque quando assumo em público que gosto de cozinhar as reações são as mais variadas: uns não acreditam e acham que estou fazendo tipo, outros revelam surpresa e outros, ainda, reprovam.
              Para muitas, não sou uma mulher do meu tempo, pois consideram que a modernidade cotidiana combina apenas com “fast food”, com uma boa cozinheira de forno, fogão e congelados, ou com uma variedade de restaurantes, cada um mais impessoal que outro. Nada contra ao que é  prático e necessário no dia-a-dia, mas estou  falando do meu sentimento em relação a tudo isso, no que realmente gosto e acredito.
              Um capítulo à parte nas minhas aventuras gastronômicas são os livros. Adoro livros que tratem do tema e, de quebra, tragam algumas receitinhas práticas e fáceis de executar. Muitos são verdadeiras delícias literárias, crônicas do cotidiano de quem gosta de experimentar,  aventurar-se, de comer e de cozinhar. Adoro os da cozinha tradicional dos lugares por onde ando, pois eles nos ensinam a conhecer as pessoas, como pensam e sentem através do que comem. Também tenho amigas que gostam de cozinhar e sempre que possível, trocamos receitas, sugestões, bibliografias e truques culinários.
               Gosto também de filmes, não necessariamente com intenções e temática de culinária, mas com cenas antológicas do “fazer comida”. Alguns como “A festa de Babete”, “Gabriela Cravo e Canela”, “Sabor da Paixão”, “Chocolate” e o meu favorito dentre eles, “Como Água Para Chocolate”. Penso na delícia que é estabelecer a relação entre o ato de comer e amar e de como, fisiologicamente, se associam. Ambos são atos de satisfação, de amor, de proporcionar e se dar prazer.
              Voltando ao meu universo de “aprendiz de cozinheira”, nem sempre posso proporcionar-me este prazer e nem também posso assegurar que, se fosse uma tarefa rotineira, o ato de cozinhar seria ainda considerado “um prazer”  ou mais uma tarefa cansativa, como quase tudo que se torna obrigatório.Na realidade, presente em mim a sensação que fica quando os meus se deliciam com uma comida feita por mim, com prazer, com amor e carinho é de que eles tomam posse de parte da minha alma.