A MISTURA
Extraído do livro do autor: “Tute – Brincadeiras de papel”
Acredito que muitas pessoas saibam o significado da palavra mistura e seus sinônimos, são dezenas de citações em dicionários da lingua portuguesa, dos quais cito apenas alguns exemplos para não prolongar a conversa, a saber: ligação, fusão, filiação, junção, união, combinação, entre outros. Mas o termo mistura tem para mim um sentido saboroso e muito forte, o qual trago na memoria afetiva e que aguça o meu paladar.
Desde a infância, até aos dias de hoje, quando ouço ou leio a palavra mistura ela logo me remete ao complemento de um prato principal, que no meu caso eram os dois básicos — o feijão com arroz — acompanhado da tal da mistura que podia ser bife, frango, omelete, linguiça, peixe, batata frita, enfim, tantos outros alimentos. Mais tarde acabei aprendendo que o que acompanha um prato principal denomina-se guarnição.
Por que esse preâmbulo todo para falar de mistura, porque veio aqui na minha cachola uma bela lembrança dos tempos idos quando trocávamos a mistura com alguns dos vizinhos especiais. Lembro-me muito bem dos meus amigos mais próximos — que residiam do outro lado da rua — os irmãos Zé Carlos, Eugenio e Marcia. Eram constantes as vezes em que a gente bisbilhotava na casa do outro o que seria servido de mistura na refeição, para ver se valia a pena trocar. Confesso, não desmerecendo o tempero da minha mãe, mas o da mãe deles, a Dona Constança, era divinal, uma comida mineira de lamber os beiços, tutu de feijão, couve e torresmo, por vezes angu, frango ensopado e mandioca. Já a Dona Santa, minha mãe, fazia o trivial com esmero, que com certeza apetecia os meus amigos, pois as permutas eram habituais.
O cardápio de ambas não era extenso, mas o que importava mesmo era o sabor, temperos dignos de renomados chefs de cozinha, que apetecia os mais exigentes dos paladares. Filávamos a boia sem cerimonias, na hora do almoço ou janta, sempre de olhos na mistura. As pessoas eram mais generosas, mais solidárias, se misturavam entre si. Penso que já não exista mais nas grandes cidades essa troca de gentilezas, havia um tratamento respeitoso entre os vizinhos, existia a reciprocidade, podia-se confiar. Repito, não sei dizer se ainda tem um lugar onde vizinhos compartilham deliberadamente a refeição.
Sinto saudades daqueles tempos e o sabor de cada mistura aguçando o meu paladar. O que sei é que há décadas resido em condomínio de apartamentos e percebo que, hoje em dia, nem o cheiro da comida do vizinho do mesmo andar é compartilhado. O que existe agora é o paradoxo daquela troca de mistura de outrora, com gente que não se mistura.