ARMA DESALMADA, ALMA DESARMADA
A televisão exibia uma reportagem sobre o uso de armas de fogo para abater javalis – a justificativa é que esses animais tornaram-se ameaça às lavouras em razão da população crescente e procriação descontrolada (a espécie que não é nativa daqui e, por isso, não tem inimigos naturais) – quando me veio à memória o período em que trabalhei em uma importante empresa brasileira do segmento de armas, munições e equipamentos para caça e pesca.
Armas nunca foram meu forte. Aliás, nunca foi algo com o qual eu compactuasse; ao contrário, sempre tive aversão a elas. Porém, quis o acaso que, num momento da minha vida profissional, fosse trabalhar numa dessas indústrias. O destino fora deveras cruel comigo, haja vista que minha função, no setor de marketing era a de “trabalhar” para alavancar as vendas dos produtos. Enquanto ali permaneci, meu íntimo apontava incisivamente, como um dedo em riste, a mea culpa, embora o mantra da organização fosse de que “arma não é para ataque, mas sim para a defesa.”
A frase, no entanto, não me convencia e muito menos amenizava o desastre que eu sabia que elas causavam. Minha função — coordenador de propaganda, — consistia em administrar a propaganda cooperada junto aos lojistas que comercializavam nossos produtos, os estabelecimentos de venda de materiais de caça e pesca. Cabe aqui uma explicação sobre o que vem a ser isso. Propaganda cooperada é a situação na qual duas ou mais empresas dividem os custos de publicidade para a produção e veiculação de anúncios de seus produtos ou serviços.
No caso especifico dos produtos da empresa, apresentávamos o plano de comunicação aos lojistas (atacadistas e varejistas), revendedores, cujos custos fossem compatíveis e convenientes com o seu porte financeiro. Uma vez acertadas as condições financeiras, bem como o meio e o veículo para inserir os anúncios com nossos produtos e a referência da loja, era de nossa responsabilidade elaborar o plano de comunicação e a criar as peças publicitárias, de acordo com as características regionais.
Assim, durante meses, criávamos layouts de anúncios para revistas, jornais, outdoor e textos para locução em emissoras de rádio. A cada dia nesse trabalho, mais e mais o sentimento de culpa me invadia. Minha aflição e indignação aumentavam quase na mesma proporção dos níveis de vendas que se elevavam prodigiosamente. Para mim, aqueles foram dias muito difíceis.
Dois fatos estão marcados na minha lembrança e que, na época, me deixaram angustiado e levaram a repensar o que estaria fazendo naquele ambiente um cidadão contrário ao uso de armas. O primeiro, os anúncios que elaborei para a mídia na região sul onde procurava convencer os clientes finais de que bandos de porcos selvagens destruíam suas plantações. O título era “Está aberta a temporada de caças aos javalis” e a estampa trazia uma carabina e seus respectivos cartuchos. Embora parecesse algo em defesa da produção agrícola, tratava-se, mesmo do extermínio em profusão de animais.
O segundo talvez esse tenha sido determinante para minha saída da empresa. Numa quarta-feira, 17 de abril de 1.996, quase ao final do expediente, fui chamado à sala de reuniões, onde, eufóricos, meu supervisor e o pessoal de vendas solicitaram que eu entrasse em contato com nossos principais clientes do sudeste do Pará e elaborasse um plano de comunicação para a divulgação de munições. Imediatamente, enquanto um assistente fazia os telefonemas, elaborei layouts e textos para a ocasião.
Por uma triste coincidência foi nesse dia que ocorreu naquele estado, a chacina que se tornaria internacionalmente conhecida como o massacre de Eldorado dos Carajás. Os jornais da época divulgaram que 155 militares participaram de uma operação policial que terminou com 21 camponeses mortos, 19 feridos no local do ataque, e outros dois que faleceram mais tarde no hospital. Eram famílias que marchavam rumo à Belém para reivindicar o direito à terra.
Sou leigo no assunto, mas quero crer que deva existir outras formas de conter ataques de animais às plantações. Já defender terras — seja lá de quem for — não pode se transformar em atos covardes de animais selvagens empunhando armas.
Hoje, talvez para me isentar de culpa e exorcizar aqueles momentos, prefiro escrever poemas e “causos”, pois contra arma desalmada, alma desarmada.