Memórias trincadas

Eu coloquei uma película sobre a rachadura do meu celular.

Eu estava apressada, joguei tudo de forma ordenada na minha mochila vermelha velha, conferi se peguei dinheiro, escova e pasta de dente, tudo isso c o celular na mão. Então, quando já havia terminado tudo, puxei a alça da mochila para colocá-la nas costas e o celular voou das minhas mãos caindo c um estrondo c a tela virada para baixo. Nem precisei olhar, sabia q tinha trincado, fiz aquele pedido cego ao universo: por favor esteja funcionando! Por favor esteja funcionando! E estava. De modo que o rachado incomodou menos. Eu estou trilhada como meu celular, não é perceptível pois eu sigo funcionando. Eu faço tudo que preciso fazer, apesar das minhas rachaduras. Tem momentos que me tocam e é possível sentir o alto relevo deixado pela rachadura, são poucos que conseguem sentir, eu sempre sinto. As vezes fico horas olhando a parte rachada de mim, faço perguntas inúteis sobre como fui deixar isso acontecer, perco tempo nisso e então me dou conta que são perguntas vãs. Fico parada tb por vezes passando o dedo pelo trincado da tela e gosto de observar o desenho construído pelo trincado, tento enxergar alguma forma com sentido, mas não tem sentido algum, não chega a formar uma imagem de algo que exista no mundo real. Olhando o desenho sem forma, escuto ao longe a voz do vendedor que oferece películas para o celular, eu estou sentada naquele estabelecimento onde tantas vezes num pós praia tomamos café, eu parei de sentir raiva de que tudo me lembre vc e comecei a aceitar que eu tb estive ali, então acesso as memórias de sabores de cafés e tapiocas e de felicidades....

O rapaz pega meu celular e me olha com estranhesa: mas a tela já está rachada...

Eu rio e respondo: sim, eu sei que estou atrasada nesse cuidado. Pode colocar a película mesmo assim. Eu vou emoldurar esse momento em que eu me quebrei, mas a película vai ajudar para que eu não sinta o alto relevo do trincado a cada vez que precisar tocar nessas memórias.

Suze Rodrigues
Enviado por Suze Rodrigues em 16/05/2022
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