AS MENINAS E OS MENINOS DO EMIR
No anoitecer de 13 de março de 1968 eu e minha família nos mudamos para Linhares. Pouco tempo antes eu havia sido submetida ao exame de admissão em Vila Velha e na condição de aprovada, eu estava apta a cursar a primeira série ginasial na cidade para onde meu pai fora transferido no ano anterior: Linhares.
No dia 18 de março daquele ano, meu pai me levou para o primeiro dia de aula. No auge da ditadura, por medo ou por respeito, convidaram meu pai e a mim para participarmos da cerimônia de hasteamento da bandeira nacional. Uns dois degraus abaixo, perfilados, todos os alunos do turno matutino do Colégio Estadual assistiam àquela cena inusitada: ao lado das autoridades escolares, estava um militar elegantemente fardado e uma menina de tranças, vestindo um tubinho de gola, sem manga, onde se viam braços finos e percebia-se que o defunto havia sido maior, pois havia tecido fofo exatamente onde deveria haver seios. Nos pés sandálias cujas tiras ornavam desde os tornozelos até os joelhos.
Uma vez na sala de aula, os professores se sucederam e começaram a ensinar coisas que, até hoje, me diferenciam de muita gente. Naquele ano, com Lucinha Bortolotti eu aprendi muito Português, Francês com Octaviano Carvalho Calmon, História com Elizabeth Viana, Geografia com Dalmar Fundão e Ciências com Detinha Fioretti de Menezes. Matemática eu não consegui aprender com Nilton Guerra, e Educação Física eu não consegui ser aprovada com Aldenor Almeida dos Santos. Acabei tendo de repetir a série por causa dessas duas matérias e foi bom, pois sei que se tivessem me empurrado de série, eu certamente não seria quem eu sou hoje.
Nessa escola querida, creiam ou não, em 1968 eu fui baliza e desfilei por Linhares, Rio Bananal e João Neiva, fazendo piruetas no ar. Depois eu decidi tocar (caixa) na banda Olímpio Bezerra (inesquecível) e repeti esse ato até concluir o curso científico em 1975. Também foi ficando de pé sobre as carteiras das salas do segundo bloco, debruçadas sobre as janelas, que eu e algumas amigas começamos a aceitar os flertes dos rapazes que iam nos paquerar. Devo admitir que foi nos barracões e nos banheiros daquele colégio, que eu adquiri um dos piores vícios, do qual apenas quatro décadas depois eu consegui me libertar: fumar.
A vida corria, as amizades queridas fluíam e os elogios ao meu desempenho escolar vinham de gente querida como nossa amada diretora, Dona Joacyr Calmon Mantovanelli, além dos professores de idiomas como Octaviano Carvalho Calmon, Dona Antonieta Banhos Fernandes, Dona Arlêne Campos, Janir dos Santos Giuberti, Maria Consuelo Quitiba Lofêgo, Angelina Marchiori e Luzia Pandolfi. Com a minha autoestima fortalecida eu escolhi cursar Letras e, simultaneamente, aprendi a nunca economizar com ninguém algo que mudou minha vida: o reconhecimento público ao valor das pessoas.
Durante muitos anos eu atuei lecionando em vários lugares, em vários níveis de ensino, mas nunca saiu da minha memória os tempos bons que eu vivi no querido Colégio Estadual. Quando ele começou a ser reconstruído, meu peito se apertou, temendo que com a nova arquitetura os alunos do Colégio Emir de Macedo Gomes deixassem de conhecer a história dessa escola querida e não conseguissem dimensionar o quanto Linhares é desenvolvida, graças às pessoas que tiveram suas bases cognitivas, psicológicas e morais erguidas dentro das paredes de outrora.
Hoje eu voltei a trabalhar na escola em que eu cheguei para estudar há 54 anos. O portão de entrada não é mais na rua Nicola Biancardi, não se vê mais, logo na entrada, a secretaria do lado direito. A sala de dona Joacyr Calmon Montovanelli não é mais virando à esquerda, cuja porta estava frequentemente aberta, permitindo que a gente admirasse um imenso quadro pintado a óleo com a cena do grito do Ipiranga. A sala dos professores não é mais colada com a sala dos instrumentos da banda Olímpio Bezerra, não há mais os três mastros perto dos degraus que nos conduziam ao primeiro bloco de salas de aula (quatro à esquerda e outras cinco à direita), não existe mais o segundo bloco com 10 salas separadas pelos banheiros dos alunos, nem o local onde ficava a cantina com as delícias vendidas por dona Maria. Ali perto ficavam os pavilhões, onde encontrávamos tampos de carteiras quebradas e improvisávamos jogos de ping pong, nos recreios, quando alguém levava uma bolinha. Algum tempo depois fizeram ali uma biblioteca, mas eu já estava longe demais.
Do lado de fora, a gente não vê mais o “Periquito”, o moço que vendia laranjas na porta da escola e que a gente adorava vê-lo prender a fruta em um artefato, girar uma manivela e descascá-la em forma de lindos e cheirosos fitilhos. Hoje a escola tem cozinha e serve refeições com aromas deliciosos a todos os alunos que as peçam.
Atualmente, eu entro em uma estrutura linda, ajardinada, imponente, com portões metálicos automáticos muito bem cuidados e sou recebida por Beth ou pelo José Roberto, que cuidam da segurança com muito profissionalismo. Eles têm até controle remoto para abrir de longe o portão do estacionamento de veículos. Muito perto dali fica uma maravilhosa quadra de esportes, que nem de longe se assemelha àquela que há 54 anos ficava próximo à estrutura do Grupo Escolar Auto Guimarães e Souza, que um dia ficara no terreno da escola. Ao passar pelo portão de acesso, vê-se à direita estantes de vidros que ostentam as centenas de troféus ganhos por milhares de atletas, que ao longo da história de escola, atuaram com garra, fazendo nossos corações pulsarem mais forte a cada ponto ganho, arrancando de nossas gargantas gritos de guerra, de alegria e de orgulho.
Virando à esquerda, no térreo, encontram-se a biblioteca, a sala dos professores, a sala das pedagogas, a sala de planejamentos, os banheiros dos docentes, a sala da direção, a secretaria e a sala de arquivos. Contornando internamente o prédio, no térreo, encontram-se uma sala de recursos especiais, uma sala de aula, uma de idiomas, dois laboratórios de informática, dois laboratórios de ciências, a cozinha, a copiadora, a sala de apoio à de idiomas, banheiros feminino e masculino de alunos e curvando encontra-se a cantina. No andar superior ficam 21 salas de aula, sala das coordenações e sanitários diversos.
Nesses espaços todos atuam 98 profissionais da educação (professores, pedagogos, coordenadores e o Diretor, Edimar Francisco Nunes, cuja competência e educação são admiráveis e fundamentais para que a escola funcione muito bem), 12 auxiliares de serviços gerais, 06 cozinheiras e 02 vigilantes. Esse pessoal todo é da melhor qualidade e atua competente e eticamente, contribuindo para a formação dos jovens que socialmente nos sucederão.
Ao entrar na escola os alunos e visitantes se extasiam com a arquitetura moderna, com o pátio interno enorme, com dois pisos de salas de aula, com três amplas escadas, dois elevadores para servirem a portadores de necessidades especiais. No centro do pátio aberto, vê-se uma espécie de coreto, perfeito para apresentações diversas, e muito próxima a ele uma área de convivência muito aprazível. Do lado direito de quem entra, chega-se a um magnifico auditório cujo nome é uma homenagem a Jocival Marchiori (infelizmente, ele foi a primeira vítima fatal de Covid-19 em Linhares), que durante mais de trinta anos atuou na educação pública, sendo a maior parte como um diretor muito querido da escola Emir de Macedo Gomes.
Pela manhã e à tarde, nos horários de recreio, vejo 1859 meninos e meninas vestidos com camisetas e calças ou bermudas de tecido sintético, em que predominam a cor verde. Eles se vestem muito diferentemente das calças ou saias de cor caqui (com duas pregas “fêmeas” de cada lado na frente e uma prega "macho" atrás) e das camisas ou blusas de algodão de cor azul celeste, tendo do lado direito do peito um losango bordado de linha cor preta, contendo o nome da escola. Nos pés a maioria dos alunos de hoje usam chinelos e não mais os kichutes e meias brancas que usávamos.
Quando eu os observo recreando ou com eles me defronto, sinto um aperto no peito, um imenso respeito e uma grande empatia, pois é a mim e meus amigos de outrora que eu vejo refletidos no rosto de cada menino ou menina do Emir.