A argila

Um homem de hábitos peculiares e sombrios, em dado momento de sua vida, resolveu pôr suas mãos hábeis e engenhosas em uma porção de argila que há muito guardara, em segredo, no porão de sua casa.

Sempre que possível, ele descia até o subterrâneo da residência e passava horas a fio, estático, apreciando a deformidade e a estranheza que transcendia aquele pedaço de argila fria ao seu próprio ser, estasiado com o caos incandescente que o consumia à face de tal objeto enigmático.

Queria exibir seu estimado e disforme pedaço de argila em um local de destaque, em sua suntuosa sala de visitas, mas temia ser julgado como louco ou algo do gênero, por ostentar como valiosa relíquia aquela massa caótica que guardava em sua obscuridade com tanto esmero. A partir dessa necessidade, lhe ocorreu uma brilhante ideia: dedicar-se à arte de modelar e transformar aquele Barro de formas irregulares e grotescas em uma esplêndida escultura de alguma deusa grega. E assim começou a moldar aquele caos argiloso em uma magnífica e divina forma feminina.

Concluído o laborioso trabalho, com pompa, o expôs no lugar em que tanto desejara, sob a luz de seu luxuoso lustre de cristais finos, bem ao centro do amplo cômodo.

O homem não era de muitos amigos, mas dali em diante, sua casa passou a ser palco de várias e várias festas, e parecia banquetear-se com os elogios e a admiração que causava a todos a majestade de sua sublime obra de arte. Mas enquanto os ávidos olhares apreciavam aquela divindade antiga de exuberantes contornos afrodisíacos e cuja beleza os levava a ignorar a natureza de sua matéria-prima, o anfitrião regozijava-se puramente com a frieza da sua essência de matéria informe e caótica, agora revestida de boa aparência e não só aceita, mas também amada por todos. Ao passo que os convidados comiam e bebiam da belíssima forma, ele continuava a saborear-se tão somente da sua amorfa substância, sem o ínfimo resquício de receio de ser condenado ou ao menos censurado por quem quer que seja.

Inspirado no conto "A causa secreta" de Machado De Assis

Claudiomar
Enviado por Claudiomar em 11/05/2022
Reeditado em 11/05/2022
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