Produto de carne, osso e pele negra

Bip, bip, bip… (4:30), mais um dia de batalha. Às 5:15, ao engolir o pão dormido a seco, Gabriel sai de casa no bairro Palmares, na baixada fluminense e caminha em direção ao ponto de ônibus. Seria mais uma cruzada para conquistar o direito ao pão. Era escuro, ainda; o longo percurso até o trabalho o levaria à ruminar o que já vinha lhe provocando grande indisposição. As intermináveis jornadas de oito horas abaixo de -10ºC não o impediram de quebrar o gelo que havia entre seu objeto de trabalho e sua intensa reflexão acerca dos acontecimentos. Gabriel encontrava-se absorto em um mar de sangue, onde as partes destinadas ao embalo já continham elementos de trabalho vivo.

Era o seu cotidiano... Arrimo de família, negro, operário e de modesto conhecimento cultural, o jovem passara a compreender o funcionamento do frigorífico: imolar os animais a consumir e a vida dos seus companheiros. Assim como ele, a maioria dos operários que ali trabalhavam eram negros e oriundos de bairros pobres. O ambiente era extremamente frio e angustiante; a carretilha, de costume, vinha esmurrando os operários em atividade. O clima era de circunspecção. Pudera! Afonso, seu companheiro de infância, havia acabado de perder parte dos movimentos do braço esquerdo após ter sofrido acidente com o próprio facão. Luiz, irmão de Afonso, por sua vez, já se encontrava há dois anos em casa, invalido e lutando para receber auxílio do governo após ter escorregado no gelo e caído na máquina ao ligar a câmara fria. O aparato industrial não perdoa vacilos, e o braço direito de Luiz fora completamente esmagado.

Relatos de perda de dedo no correntão, perda da mão na serra eram frequentes. Gabriel, prontamente, percebera que – para o patrão – sua vida e de seus companheiros era produto substituível e descartável. Todos eram simples mercadoria, afinal. A diferença era que o boi, vendido em partes, continha o trabalho e todos os riscos acumulados, enquanto ele e seus amigos contavam com um mísero ordenado para reproduzir a matança e seus vencimentos, amiúde.

(Uma crônica sobre a vida de um operário negro em um frigorífico. O texto está repleto de conceitos marxistas. A materialização dos conceitos marxistas através de uma linguagem simples e dinâmica constitui o meu objetivo central na escrita).