SENTIMENTOS

Texto extraído do livro do autor: "Tute - Brincadeiras de papel"

“O sentido da vida é evidente quando somos capazes de sentir saudades dos momentos compartilhados com pessoas queridas, pois o que a memória amou, a memória eternizou.” - Tute

Quando criança, poucas vezes eu vi minha mãe chorando e, dessas poucas vezes, talvez chorasse por saudade de alguém que partiu, de dores, talvez, ou de uma cena triste na novela da TV, quem sabe. Também, nunca perguntei porquê. Já o meu pai, nunca presenciei uma lágrima sequer, afinal homem não chora, pelo menos é o que diziam. Mas nunca acreditei nessa lorota porque eu, — sendo menino homem, — era um chorão. Pode ser que o meu pai chorasse escondido. Pode ser que meus pais chorassem por chorar, pelas perdas e pelas conquistas, ou pelas dificuldades próprias da vida, pode ser.

Com o passar dos anos fui percebendo que chorar é algo corriqueiro, pois chora-se de tristeza; chora-se de felicidade; chora-se por tudo; chora-se por nada; chora-se por acontecimentos do cotidiano que se perderam no tempo. Esse tempo que é uma tempestade impetuosa que leva os momentos da vida, enquanto que, ao contrário, a memória perpetua e resgata à vida os momentos vividos. Crianças têm todo o tempo pela frente sendo que a memória é algo ainda tênue, muito sutil. Não percebem que uma canção não é somente uma canção, que um filme não é apenas um filme. Não entendem que o momento não é simplesmente um momento e o quanto a infância — pareça efêmera — é dotada de eternidade. A passagem do tempo nos traz experiência, com ele os filhos tornam-se adultos, vem também a velhice, nos cria barriga e nos causa calvície, nos leva pessoas próximas, gente querida, Para nos enganar, a memória nos prega troças fazendo-nos crer que ainda estamos em forma, em forma de alguma coisa, é claro. Pensamos que os filhos ainda são crianças, que os nossos amigos estão ao redor, que os nossos entes queridos não partiram.

Quanto mais tempo de vida, mais momentos eternizamos em nossas almas e, de repente, nosso arquivo secreto transborda de segredos — nossa memória é repleta de segredos — daquilo que aprendemos a amar, que nos fez feliz, que feriu em demasia, que gerou saudades e que extrapolou o tempo daquilo que permanece inadvertidamente. O condão que nos causa emoção vem de tudo isso, quando pensávamos que tudo estivesse bem guardado atrás da porta, ela se escancara, deixando a emoção escapar pelas frestas e se espalhar como poeiras no ar.

Repentinamente você está com alguém em um lugar qualquer e ao fundo uma canção ecoa pelo ambiente, mas só você, somente você percebe que aquela música lhe faz sentido — foi uma trilha sonora de um sublime momento, de um grande amor, ou de uma desilusão qualquer. Ainda, ao passar por um local a mente é acionada ao lembrar que já esteve por ali e, mesmo que tenham-se passados anos, a memória afetiva é despertada, pois o calendário do tempo está firme fixado na parede do sentimento, aquela data, marcada com um “x”, traz à tona aquele momento, aquele instante, por mais ínfimo que possa ter sido.

Assim ocorre com amigos verdadeiros, eles têm a prerrogativa de se tornarem eternos em nossos corações. Por isso entendo que rever amigos da infância, ou da juventude, depois de anos, é saudável e de suma importância. Encontros com pessoas especiais resgatam o que um dia fomos — meninos cheios de alegria e petulância; adolescentes loucos e inocentes. Percebemos que o tempo não se passou para a memória, mas eternizou nossas brincadeiras, nossos apelidos, nossos carinho e afetos... mesmo que estejam evidentes os cabelos brancos, as rugas, as dores nas costas, os joelhos combalidos, entre outras coisas decorrentes. Seremos sempre “os meninos”, pois o que a memória amou, a memória eternizou.

Daí a dificuldade para despedir-se de alguém especial que deixou de fazer parte de nossas vidas, ou de um amor que seja lá por qual motivo partiu. Dizem que o tempo cura tudo, mas entendo que não seja tão simples assim. É certo que ele age como um bálsamo, ajeita as coisas, cura ferimentos. Todavia, nossa capacidade de amar faz emergir do fundo da memória lembranças de um tempo, que por vezes aflora e nos desafia em conter a emoção.

O que nos liga é o que somos, — nutridos de afeto, — e por momentos relevantes que se passaram num instante e, num instante, ao ouvir uma canção das antigas ou por estar num lugar outrora especial, ressurgem como querendo dizer: somos memórias vivas na vida de pessoas queridas e, mesmo quando partirmos seremos eternos na lembrança daqueles que um dia amamos e nos amaram.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 10/05/2022
Reeditado em 11/05/2022
Código do texto: T7513133
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