Sabedoria das Ribeiras Amazônicas
Já viajei mais vezes pelas águas virtuais do “face book”. Atualmente, nas poucas viagens que realizo, costumo curtir e comentar postagens de número reduzidíssimo de amigos construídos nas viagens, pelas águas reais de rios e mares da vida.
Um desses, amizade desde os tempos dos primeiros anos do hoje chamado Ensino Médio, ou seja, bem próximo a marca de 70 anos de amizade. É muito conhecido em Belém do Pará por ser uma das maiores expressões do esporte amador paraense, além de ter feito parte da equipe técnica da SUDAM que participou da era desenvolvimentista e sustentável, promovida pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM.
Pois bem, na prática de um dos muitos esportes que pratica, sai para pedalar e tem como base uma área que sofreu grande urbanização e se transformou num dos muitos pontos belos da cidade, às margens das águas barrentas que banham a cidade, conhecida como Portal da Amazônia. Aproveita esse intervalo para hidratação com água de coco e tira fotos e, algumas delas, postadas nessas águas incolores, não sonoras e sem sabores da virtualidade.
Suas postagens, invariavelmente, enchem de recordações, principalmente, os que de a Cidade Morena tiveram que partir. Entretanto, essa postagem, foto de pequena embarcação, conhecida como “navio gaiola”, matéria prima dessa narrativa, arrebatou-me. Fui tomado por turbilhão de lembranças, que tentei registrá-las num comentário, transcrito, com adaptações, a seguir.
A foto lembra o tal “navio gaiola” que o Nilson Chaves (compositor, músico, cantor ... paraense) cantou e ainda ressoa.
Numa embarcação bem parecida como essa, segundo narrativas luminosas materna, devo ter feito minha primeira viagem de ida Óbidos – Belém, para ir nascer na casa dos avôs maternos, e três meses depois voltar, para Óbidos. Aquela cidade em que o rio Amazonas, recebe o abraço mais apertado em todo o seu percurso - Estreito de Óbidos.
Entre dois anos e dois e meio voltei, repetindo o percurso Óbidos Belém, para residir num de os mais encantadores distritos de Belém, a Ilha de Mosqueiro.
Mais uma vez, voltei a Óbidos. Em 1949, fui passar férias de final de ano com meus pais e, aí, em gaiola um pouco maior, do que esse da postagem. Se a memória não me trair, chamava-se “Aquidabam”.
Na volta dessas inesquecíveis férias, uma das maiores lições sobre forma de relacionamento entre líder e liderados e muito semelhante às relações passionais.
O navio gaiola parou em Alenquer (município paraense, que fica no percurso Óbidos -Belém) para carregar gado. Atento, assisti, debruçado no parapeito, entre duas traves da estrutura do navio.
Uma imagem reveladora do que poderíamos chamar "liderança condutora de gado".
O gado marrom caramelado, "mito do rebanho", era conduzido pelo "boiadeiro" por meio de corda enlaçada ao pescoço do "gado mito”. O “boiadeiro” era seguido pelo “gado mito” que, por sua vez, era a acompanhado disciplinadamente, por uns dez a quinze fiéis gados seguidores. Esse espetáculo instintivo da espécie bovina continuava no descer de pequena ladeira, passava por um pontilhão que os conduzia à espécie de porão do “navio gaiola”. O grupo adentrava ao porão, era acomodado e o “boiadeiro” e o "gado mito" voltavam e subiam a pequena rampa.
Em torno de seis vezes a mesma operação, para carregar o “navio gaiola” de gados instintivamente (passionalmente) liderados pelo “gado mito”, conduzido pelo “boiadeiro”, com destino ao matadouro de Belém.
“Gado mito” e “boiadeiro” não embarcaram com destino ao matadouro...
Faz sentido, acrescentar a transcrição de trecho da letra da música “Navio Gaiola”, cuja autoria desconheço: “Levo no olhar muita lembrança/ Levo a dor levo esperança/ A saudade me devora/ Vendo o Sol correr nas brenhas/ E sair o navio gaiola.
E, faz sentido encerrar com a máxima, síntese dessa crônica de saudade e de aprendizado, revelada numa das viagens pelo barrento do Amazonas: “todo gado criado, educado para corte, tem o gado mito que o conduz, de forma instintiva (passional) sem resistências ao matadouro”.