DIÁRIO DE UMA PANDEMIA (Dia 15; Dia 16)

Dia 15

05 de maio de 2026

Hoje acordei com a sensação de consciência lavada.

Com a sensação de dever cumprido.

Com a certeza cumpri meu dever de ser humano…!

Mas também convencido de que muitos não entenderão meu gesto.

Já faz muito tempo que venho dizendo: nosso mundo está podre.

Não se trata de apenas uma maçã estragada. Toda a cesta está contaminada. E se deixarmos continuar assim, não só as maçãs continuarão estragadas, mas a própria macieira corre o risco de morrer.

Ah! Como faz bem ouvir aqueles versos do Raul Seixas em suas aventuras “na cidade de Thor”:

“…

Tá rebocado, meu compadre

Como os donos do mundo piraram

Eles já são carrascos e vítimas

Do próprio mecanismo que criaram

O monstro SIST arretado

E tá doido pra transar comigo

E sempre que você dorme de touca

Ele fatura em cima do inimigo

A arapuca está armada

E não adianta de fora protestar

Quando se quer entrar num buraco de rato

De rato você tem que transar

Buliram muito com o planeta

E o planeta como um cachorro eu vejo

Se ele já não aguenta mais as pulgas

Se livra delas num sacolejo

….”

Mas nosso problema não é o planeta.

Nosso problema é o mundo.

São os ratos que não são capazes de “transar” as coisas dos seres humanos. E as vítimas somos nós... e o planeta, que é vítima do nosso mundo.

E o nosso mundo não é o planeta.

Nosso mundo é aquilo que fizemos no planeta. Nosso mundo é o modelo cultural, econômico, social, político… que construímos e que nos destrói.

O planeta nos foi dado pela natureza. Nosso mundo o estamos construindo desde o começo do ser humano. Nosso mundo é a cesta com as maçãs podres.

O planeta é a macieira, no qual se instalaram muitas cestas de maçãs podres.

Dia 16

7 de maio de 2026

Até pareço um adolescente.

Eu, aqui, fazendo anotações em meu diário enquanto o avião me leva de volta para meu refúgio. Para o sossego do meu universo particular.

Lá poderei, novamente, dedicar-me aos meus estudos da biologia amazônica – antes que o desmatamento e as queimadas e o nosso mundo acabem com elas.

Realmente pareço um adolescente.

Fecho os olhos e não me vejo entregando meu produtos para ser levado para a China. Nada disso, de olhos fechados vejo minha vizinha e seu bolo delicioso, naquela noite em que visitei sua casa e passamos horas agradabilíssimas, esquecendo “as dores do mundo”.

Naquela noite, voltando pra casa eu cantarolava o refrão da música do Hildon.

“Eu vou,

esquecer de tudo

as dores do mundo

Não quero saber quem fui

mas sim o que sou”

Mas, aqui nas alturas, não tenho a companhia da vizinha. Tenho apenas e tão somente minhas lamentações em relação a tudo que vem acontecendo: vejo o mundo em crise e mergulhando num caminho sem volta...e todos caminhando em direção ao abismo…

Crise econômica sendo anunciada dia após dia. Mas uma crise que somente diz respeito às grandes corporações, pois o povo nem se dá conta disso. É apenas número e gráficos e estatísticas. É somente aquele que paga a conta. Uma conta que, a cada dia, fica mais cara. E o povo, cada dia com menos dinheiro pra pagar a conta.

Crise na política, pois as pessoas já não acreditam mais nas lideranças políticas. Lideranças que foram postas no poder pelo povo, mas esse mesmo povo virou vítima dos jogos de interesses dos seus líderes. É um “povo marcado, povo feliz”, nos versos da música do Zé Ramalho.

Crise nas instituições da justiça, pois os artifícios das leis criam tantas oportunidades para o malandro escorrer e escorregar por entre as malhas da lei que nem se pode mais acreditar na força da lei. Menos ainda na justiça. E se não se pode esperar nada de bom, vindo da justiça, o que sobra para as pessoas?

Crises que não se manifestam como momentos de crescimento, de purificação como propõe a dialética, mas são o sinal da decadência dos valores; indicam apenas que a humanidade está se encaminhando para o fim.

Nosso mundo está à beira do fim.

Como lobos, devorando-se mutuamente, assim se nos apresentam os seres humanos. Hobbes tinha razão: o homem é o lobo do homem, ou como diziam os romanos três séculos antes de Cristo: “Homo homini lupus”.