O amanhã a Deus pertence

Talvez, mais que a criminalidade ou as drogas, algo que realmente está tornando a geração atual doente é a ansiedade. Preciso daquele novo jogo em meu celular ultramoderno. Você ainda não experimentou esse novo aplicativo? Está ficando para trás. Se todo mundo tem, eu também vou ter e tem que ser pra ontem, não vou aceitar ficar para trás, custe o que custar. E às vezes custa mesmo a própria vida da pessoa.

Acredito que a atualidade permite a apresentação de uma nova espécie humana, trata-se do homo ansiosus. Esse descontrole generalizado do ser humano é uma faceta do mal do século: a ansiedade. Somos um exército de cidadãos ansiosos, num mundo ansioso e cercados de estímulos que induzem diretamente a esse estado permanente de ansiedade. Em nossas casas, onde deveria existir vários livros, para fantásticas viagens literárias, ou confortáveis poltronas, para intermináveis e prazerosos colóquios, temos a presença da tecnologia usada de forma massificante, onde desde pequenos trocamos o diálogo pela fixação nas redes sociais.

Dona Maria, lá nos cafundós do grande Sertão Veredas, acorda por volta das cinco da matina para arrumar a marmita do Sebastião. Esse por sua vez passa o dia no roçado, na companhia de sua enxada de cabo de guatambu e do cachorro Bilaco. Durante a estadia do marido na roça, a mulher faz todos os seus afazeres domésticos, com a calma característica do sertanejo e ainda sobra tempo para as orações e a renda de bilro. Essa calmaria acompanha a família por décadas e é passada de geração a geração. Dona Etelvina, avó de Dona Maria, sabiamente lhe ensinou que não se deve ter preocupação por antecedência, pois o amanhã a Deus pertence.

Enquanto isso, na selva de pedras, o trânsito caótico de uma grande cidade, o vai e vem de milhares de pessoas, o ritmo frenético de uma geração de ansiosos. E Odete se lembrou do celular novo, de múltiplas funções, o mais caro e descolado do momento, que prometeu para a sua filha caçula Estela. A mulher quase teve um colapso nervoso ao se lembrar do presente que prometeu à filha e esqueceu de comprar.

Saiu rasgando no trânsito, quase atropelou umas pessoas quando atravessou a faixa de pedestres com o farol no vermelho. Colocou sua vida e a de outras pessoas em risco, pois foi cegamente para a casa preocupadíssima com a reação de sua filha em relação ao esquecimento do presente. Chegou esbaforida em casa e pediu infinitas desculpas à filha. A menina tranquilizou a mãe, no mesmo momento em que já portava o seu celular dos sonhos em mãos e informou que compreendendo a falta de tempo de sua genitora, ela mesmo efetuou a compra do aparelho, utilizando sem permissão o cartão de crédito da mãe, tendo em vista o tão premente era satisfazer o seu ego.

As realidades de Dona Maria e de Odete vêm nos mostrar o quanto a ansiedade é nociva a nossa vida. Lá no sertão Dona Maria vive tranquila, seguindo os ensinamentos de sua avó, seguindo o ritmo natural dos dias e horas. Já na cidade grande, Odete, quase neurastênica, se preocupa ostensivamente com o que a filha vai dizer ou pensar dela porque não lhe comprou o celular desejado. E a filha de Odete, expressando ainda mais o poder da ansiedade, já se antevendo à falta de tempo da mãe, comprou o aparelho, alimentando assim a sua sanha consumista, impulsionada pela agressividade do marketing subliminar que impinge no ser humano a necessidade do urgente, do pra ontem.

Voltando ao fato de que o futuro somente a Deus pertence, não devemos nos preocupar com o tempo, e para que a ansiedade não nos vença, as coisas tem que acontecer naturalmente, tudo a seu devido tempo. Lembremos do que nos diz a Bíblia no Livro do Eclesiastes, capítulo 3, versículos de 1 até 8. “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.”

Dois outros trechos do livro sagrado deixam claríssimo que não devemos nos deixar abater pelo mal da ansiedade. Em Filipenses, capítulo 4, versículos 6 até 8, temos: “Não andem ansiosos por coisa alguma, mas em tudo, pela oração e súplicas, e com ação de graças, apresentem seus pedidos a Deus. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o coração e a mente de vocês em Cristo Jesus. Finalmente, irmãos, tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas coisas.” E o evangelista Mateus, no capítulo 6, versículos de 31 até 34, comprova que não devemos nos preocupar de maneira alguma com o amanhã, padecer de véspera. Eis as suas sagradas palavras: “Portanto, não se preocupem, dizendo: 'Que vamos comer?' ou 'Que vamos beber?' ou 'Que vamos vestir?' Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês precisam delas. Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas serão acrescentadas a vocês. Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.

Somente iremos vencer a ansiedade quando nos espelharmos mais na Dona Maria lá do sertão e no seu jeito sábio de viver. Quando entendermos que não devemos nos preocupar excessivamente com o ter ou os apelos do consumo exagerado de Odete e sua filha. O segredo é compreender que o amanhã a Deus pertence, que devemos viver mais intensamente aquilo que nos acalma, que nos leva a um exercício diário de contemplação do belo que é a vida, a nossa família e os momentos que construímos laços inquebrantáveis com que amamos e com o sagrado.

“A solidão produz insegurança — mas o relacionamento não parece fazer outra coisa. Numa relação, você pode sentir-se tão inseguro quanto sem ela, ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à ansiedade.”

Zygmunt Bauman

Publicada em "Ditos e Feitos: antologia de contos e crônicas" - Páginas 217, 218 e 219

Editora: Recanto das Letras (2020)