E se eu começasse a dançar?

Saí do carro em meio à chuva. Dia de semana, nada de interessante a fazer, a não ser cumprir o protocolo de ser uma boa dona de casa e ir na Feira que tinha acabado de abrir ali perto, não tão perto para andar a pé, mas o suficiente para me deixar alegre por ter uma novidade para fazer.

Estou ainda na quarentena desta pandemia sem precedentes na minha memória e abrir uma feira se tornou algo como se eu estivesse indo na inauguração de um novo Bar de Forró.

Costumava frequentar nas sextas à noite, tão perto que ia sem carro. Algo inédito para mim, que sou capaz de ir de carro a um outro lugar para caminhar. Sei que não faz sentido, e nem tenho como explicar, mas faço isso. Só umas das minhas tantas imperfeições. Algumas me recuso a mudar.

Dançava duas vezes por semana na academia e sexta era o momento da prática de bar, de me colocar no desafio de exercitar com desconhecidos, não sou nada fã disso, e fingir naturalidade a cada troca de música e de jeitos do parceiro. Para uma virginiana que prefere rotinas e segurança, era minha maneira de me superar, de formar outro padrão menos metódico e lógico.

A dança me faz flutuar e ao mesmo tempo me faz sentir dentro de mim mesma, sou eu sendo EU em essência e movimento. Não penso em nada, não existo, não estou em lugar algum, não sou ninguém, não tenho idade, profissão, nada...simplesmente SOU. Para uma mente racional e ligeira como a minha, ter estes momentos é um bálsamo, um alívio, que nem meditando por horas a vida inteira chego ao Nirvana como chego quando estou dançando. E aí poderia pensar em alguma música mais glamourosa, um Ballet Russo, ou a Cia da Debora Colker, mas nada… sinto tudo isso num forró mesmo.

Suado, agitado, bem nordestino, com letras que beiram ao brega e romantismo barato. Mas nem ouço, é o som dos instrumentos que mexem com minhas cadeiras e me faz dançar. Não me importa exatamente com quem, me desculpem meus parceiros, o que me importa é o como se dança. Há pessoas que nem vou com a cara, que não convidaria para um drink nem quero conversar jamais, mas são donas de passos incríveis que me recrutam novas maneiras de me mexer e me encanta. Outros têm a sorte de serem legais e também dançar como gosto.

Não digo dançar bem, porque tem quem dance bem e eu deteste fazer o par, fico tensa, me sinto obrigada a fazer bonito e acaba me travando. Gosto do simples e também do complexo e nem tem como explicar, é questão de uma química que só se sabe ao provar. E termina a música, troca-se de par e não há apego a ninguém, somos seres dançantes e não pertencemos uns aos outros.

Confesso que na primeira vez neste bar perto de casa, fui de carro. Era ridículo de perto, mas inventei que não queria subir o morro da minha rua na volta. Ok, sempre desculpas esfarrapadas para meu vício admitido em andar de carro. Mas rodei, rodei e nada, nenhuma vaga. Achei em frente de um sushi que já estava fechado, mas tinha gente fazendo a limpeza. Fiquei super feliz, vaga privilegiada. Na volta, a surpresa. Correntes trancavam meu carro. Castigo por ser preguiçosa. Teria que ir pra casa de salto.

Lição aprendida, nunca mais fiz desta, mas usava de outro meio para me sentir segura. Filhos crescidos, um levava e outro na madrugada buscava. Nunca levei um filho em festas porque ambos não curtem, e a vida traz essas piadas, eles me levando e me buscando num bar para dançar. Não bebo álcool fora de casa, então ao menos não buscavam uma mãe bêbada, menos mal, menos feio.

Lembro de tudo isso ao entrar no grande salão que tem a nova feira. Espaço grande, frutas e verduras bem organizadas, pessoas fantasiadas de máscaras, que ainda não me habituei e me dá vontade de rir, acho toda essa situação ridícula, surreal viver como num filme apocalíptico de segunda categoria. E de repente escuto uma música no meio desses meus devaneios e penso:

E se eu começasse a dançar?

2021

Juli Sell
Enviado por Juli Sell em 04/05/2022
Reeditado em 04/05/2022
Código do texto: T7509172
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