Paraíso Infernal
A torneira da pia da cozinha não parava de pingar. Apertei-a ao máximo e ela continuava a pingar insistentemente, como a caçoar de mim, de minha impotência. Li num livro, não lembro qual, que todo homem deveria saber consertar uma torneira. Bem, não devo ser homem mesmo, pois não consigo consertá-la. De certa forma me sinto envergonhado, pois sou homem, mas o livro dizia que eu não poderia sê-lo, pois eu não tinha a competência natural dos homens, ou seja, consertar uma torneira. Vergonha!
Talvez, eu gostasse do “tic-tac” da goteira batendo na base da pia. Misturado com o tic-tac original do antigo relógio da sala. Os dois tic-tacs, o falso da torneira da pia e o verdadeiro do antigo relógio da sala começaram a fazer parte de minha rotina e ganhando espaço em meus próprios movimentos, até voltei a assobiar, coisa que só fazia quando adolescente. Eles me deram um novo hábito e trouxeram algo “esquecido” em minha memória, aos modos proustianos.
A situação complicou quando os trens voltaram a passar pela antiga estação que estava desativada há bastante tempo. A estação ficava a 500m de distância de minha casa. A cada 40min. passa um trem extremamente barulhento que junto com as vozes e gritos dos passageiros, os tic-tacs são emudecidos. A estação é rodeada por uma concha natural montanhosa, fazendo com que os sons do trem e das pessoas se multipliquem em vários decibéis.
O mais estranho é que entre um trem e outro, no momento de completo silêncio, não ouvia mais os tic-tacs. Corria até à cozinha e via que a goteira continuava. Voltava à sala e via que o relógio batia normalmente. Minha empregada perguntava quando eu iria consertar a goteira da pia da cozinha, ou seja, ela ouvia os tic-tacs, mas eu não. Resolvi procurar um otorrino. Depois de contá-lo meu problema, ele passou alguns exames e desconfiava que eu estava perdendo a audição. Os resultados do exame disseram que eu tinha a audição perfeitamente saudável e que meu caso deveria ser algo passageiro. Aconselhou-me a viajar para um lugar mais calmo, sair daquela rotina barulhenta.
Fui para a casa de campo de um casal de amigos. A casa estaria à minha disposição, já que ele só iria viajar no fim de ano. O lugar era extremamente belo, a casa tinha um deque nos fundos com vista para um lago. Lugar perfeito, sonoramente perfeito. Sem goteiras, sem trens e gentes barulhentos, apenas os sons naturais das criaturas do campo.
Aproveitei aquela paz para colocar umas leituras em dia. Li Oscar Wilde, Shakespeare e Kafka. À noite esfriava e o céu totalmente estrelado proporcionava um momento prazeroso e de muita beleza. Uma noite adormeci na espreguiçadeira que ficava no deck. Acordei de madrugada com vontade de mijar. Corri ao banheiro. Na volta fui até a cozinha e preparei um chocolate quente. A torneira da pia perfeita, seca, sem goteira. O relógio da sala, em sono profundo, na verdade um tic-tac suave, suavíssimo. Lá fora, a brisa do sereno, o silêncio, a paz. Deu-me uma saudade imensa dos barulhos, do caos, dos trens, das gentes, dos tic-tacs infernais. No dia seguinte, arrumei a mala, agradeci aos amigos por telefone e voltei para o mundo.