Carta do Primeiro de Maio de um indolente

Por ter trabalhado durante vinte e cinco anos em atividade insalubre na estrada de ferro, fui aposentado aos quarenta e oito de idade. Desde então virei vagabundo, conforme pensamento do abjeto Fernando Henrique Cardoso.

O poeta Cesare fala das pessoas que são incapazes de entrar no ritmo da vida de pessoas ditas normais, que é a do “cidadão comum como esses que se vê na rua”, outra referência de outro bom poeta, o Belchior. Essa gente “honesta, boa e comovida” subsiste numa vidinha medíocre, reiteração diária de atos rendosos para o tal sistema. Os que não se enquadram nessa realidade, os marginais, vagabundos, velhos improdutivos, crianças idem, prostitutas e aposentados, os que não têm uma atividade lucrativa do ponto de vista do capitalismo, simplesmente entram na cota dos ociosos, indolentes e vadios.

Compreendo que minha inatividade é irreparável. Deixei de ser fértil para o sistema, impus a mim mesmo outra rotina de criação. Acordo às cinco horas da manhã, consagro mais de doze horas por dia para dar conta de miudezas nesse invisível labirinto de tempo ocioso dos aposentados. Voltei a marcar meu próprio ritmo, sem horário e sem patrão, ziguezagueando entre uma composição literária e um projeto de filme, mexendo com internet e com meus alfarrábios antigos, anotações do tempo em que escrevia com caneta, viajando na minha juventude ou martelando no ideal de criar novas aventuras culturais para as gerações futuras.

De vez em quando busco algo mais efêmero e prazeroso sob o notório influxo de velhos camaradas em roda de hedonistas sem um ponto central de negócios, vivedores descomprometidos com as regras esquematizadas da sociedade de consumo. Do fundo dos aconchegantes “pés sujos”, faço poesia agradecendo e venerando a recriação da vida pelos bêbados e espirituosos, vivazes e provocadores de mesa de bar.

Quando fico visível e vulnerável é na hora de pagar as contas, administrar a vida prática, passando à aniquilação dos que não têm experiência nem perícia na arte de dirigir a vida real, concreta. Nesta “zona do agrião” sou um amador, perna-de-pau incompetente. Zona do agrião é a área do campo de futebol onde acontecem as jogadas mais perigosas, ou seja, na grande área.

No momento, meu tempo é tomado pela redação de três livros. Ainda aplico as energias na coordenação de um portal da Academia de Cordel, ensaio peças teatrais, escrevo e dirijo roteiro de documentário em vídeo e programas de rádio, estou atualizando diariamente cinco blogs na internet, tomo parte na direção de uma rádio comunitária e gerencio uma biblioteca colaborativa em três cidades, além de organizar e cuidar da logística de eventos artísticos e culturais da Sociedade Cultural Poeta Zé da Luz. Nas horas vagas, cuido da produção de conteúdo para uma rádio web. Mas não trabalho, gozo de aposentadoria. Porque trabalhar cansa!

Confesso que meu desejo permanente sempre foi viajar de um lugar para outro, sem espaço permanente, fora da rotina dos trabalhos regulares, tipo liberdade completa. Vagabundo profissional, esse é meu dom. Nasci com a aptidão de viver caminhando sem rumo certo, de forma desocupada, sobrevivendo sem malandragem, mas graças a pequenos ofícios ocasionais. Treinei esse estilo de vida aos dezoito anos quando saí da Paraíba em direção ao Norte do país, mochileiro seguindo o movimento jovem dos anos setenta, recusando os valores tradicionais de consumo. Andei a pé ou de carona em metade do Brasil, vendendo bolsa de agave e buscando a satisfação plena da liberdade. Minha mochila ainda está aqui, conservando o pó simbólico daquelas estradas dos meus dezoito anos. Ela envelheceu bem, eu nem tanto. Fui capturado, rotulado, carimbado e identificado. Mas, um tanto contente por ter persistido na perseguição de porções rarefeitas de liberdade individual. Ainda sou vagabundo, mesmo não prático e com residência fixa.

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 01/05/2022
Código do texto: T7507034
Classificação de conteúdo: seguro