Óia o Trem
Manhã fria de agosto. Vi uma fumaça no horizonte lá pelos lados da antiga estação de trem. Não era a neblina costumeira da época, mas fumaça mesmo, vindo da chaminé de um laticínio que fica nas proximidades. Como as caldeiras para pasteurização do leite são abastecidas com madeira, a fumaça sai branquinha, feito neve. Parece até o anúncio de um novo Papa na chaminé da Capela Sistina.
Essa fumaça vem carregada de muita saudade. Faz lembrar a estação de trem e a antiga Maria Fumaça. E eu, saudosista demais, fico a imaginar a época em que a linha férrea estava em plena atividade. Só imaginar, porque quando vim para Borda da Mata, sul das Minas Gerais, pela primeira vez, nos idos de 1988, os trilhos já haviam sido retirados e, conforme relatos dos antigos, fazia anos que não se ouvia mais o apito do trem.
Fico a imaginar quanta história tem essa antiga estrada. Quantos sonhos, quantos amores, quanto progresso, quantas biografias, quantos anseios foram carregados nesses vagões, num maravilhoso sobe e desce de estações, nas faíscas das chaminés e no piuí das buzinas. Óia o trem, vem cortando as curvas das montanhas do Vale do Sapucaí. E foi a região que deu nome a esse ramal da afamada Mogiana: Estrada de Ferro Sapucaí.
Num grupo do Facebook intitulado “Histórias e Fatos Antigos de Borda da Mata”, administrado pela minha querida amiga Maristela Matos, eu vi a foto de quando a estação ferroviária de Borda da Mata foi inaugurada, isso em 1° de agosto de 1895, uma solenidade então nunca vista nessa terra. A referida foto mostra uma bandeira do Brasil festivamente hasteada no largo da estação e presença maciça da população, com detalhe para a elegância das vestimentas, com os senhores portando as suas casacas. Estiveram presentes o presidente da Companhia Dr. Pereira Passos, o deputado Júlio Bueno Brandão e o Coronel Francisco Braz.
Um fato curioso relativo à estação de Borda da Mata ocorreu em 4 de fevereiro de 1927 e está registrado no livro “Borda da Mata e sua história”, de autoria do ilustre bordamatense João Bertolaccini. Ele nos conta que nessa data esteve em Borda da Mata o então Presidente do Estado de Minas Gerais, Dr. Antônio Carlos, para a inauguração da Usina Hidrelétrica no Bairro Ponte de Pedra, que forneceria energia elétrica para Borda da Mata e Pouso Alegre. Mas pouco antes da chegada do trem com a comitiva, caiu um tempestade torrencial, que impossibilitou o desembarque dos visitantes e motivou posterior retorno dos mesmos sem ao menos inaugurar a obra. “Sem tocar os pés em nossa terra, voltou tarde da noite a comitiva, de trem, levando de volta o Presidente do Estado de Minas Gerais Dr. Antonio Carlos Ribeiro de Andrada.” (Pág. 155)
Outro acontecimento ligado à ferrovia ocorreu durante a Revolução Constitucionalista de 1932. No dia 19 de julho de 1932, proveniente de Campinas – SP, chega à estação de Borda da Mata locomotiva transportando soldados paulistas que iriam atacar de surpresa o 8° Regimento de Artilharia Montada de Pouso Alegre. No livro de João Bertolaccini, na página 164: “Naquela noite, o Sr. Raul de Andrade Cobra (então Prefeito) arriou uma mula de sua propriedade e enviou o Sr. Manoel Cassimiro com uma mensagem ao Comando do 8° RAM em Pouso Alegre, informando-o do efetivo das tropas paulistas que iriam seguir no dia seguinte, depois do meio-dia, para atacar o Exército em Pouso Alegre”.
Com essa informação privilegiada os soldados mineiros do 8° RAM derrotaram os paulistas na chamada “Batalha da Vendinha”, atual bairro São João, em Pouso Alegre, onde prepararam um tocaia, munidos com os seus canhões de 75 mm. Ainda nas páginas 164 e 165, João Bertolaccini relata: “Quando levantaram a bandeira branca o bombardeio cessou. Além dos rapazes que conseguiram fugir no comboio que os havia levado até as proximidades de Pouso Alegre e os esperava a um quilômetro, distante do campo de luta, cinquenta soldados ficaram feridos e onze morreram ali mesmo, e, outros voltaram de trem para Borda da Mata, de ré.”
Recentemente estive em Pouso Alegre no apartamento dos estimados Ithamar e Horma. Além da excelente companhia e da boa prosa, ganhei dela o livro “Veredas muitas... caminhos poucos”, que lançou recentemente. Horma é minha confreira na Academia Pouso-alegrense de Letras, onde ocupa a cadeira 21. E um de nossos assuntos também foi o trem. Ela rememorou quando visitava Borda da Mata, ocasião que fazia o trajeto de trem, numa paisagem ainda preservada de belas matas e montanhas. Na página 102 de seu livro, ela menciona o trem:
“Fim de ano, tchic-tchic... piuí... piuí...
Matula cheirosa na sacola, leite gordo na estação.
Imbuia à vista, olha a fazenda do tio Chiquinho!
Mãos gritando: olha eu aqui! Tô chegando...
Seus bilhetes, por favor! Trem parando, peito estourando.”
E por uma deliciosa coincidência a capa do belíssimo livro de minha querida Horma traz a foto de uma ponte da linha férrea, infelizmente já desativada em Pouso Alegre. Essa foto é na realidade uma obra de arte revelada pelas lentes de Fernando Campanella, meu especial amigo e também nosso confrade na Academia Pouso-alegrense de Letras, cadeira 23. Essa ponte fica nas proximidades do Bairro Belo Horizonte e por lá, assim como cá, passaram muitas histórias de vida pelos trilhos que não mais existem.
Falar de trem, de nossas saudosas lembranças ferroviárias no Sul de Minas é assunto para páginas e mais páginas. Relatei aqui somente algumas histórias pitorescas ligadas a minha pesquisa particular. E não poderia finalizar sem citar o Maluco Beleza, Raul Seixas, em sua antológica “Trem das Sete”:
“Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis...
Ói, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem.”
E para arrematar:
“Quem vai chorar, quem vai sorrir?
Quem vai ficar, quem vai partir?
Pois o trem está chegando, tá chegando na estação.
É o trem das sete horas, é o último do sertão...”
04/08/2020