INFANTA NAS BOCAS DO MUNDO
“O tempo amadurece todas as coisas.Nenhum homem nasce sábio”
Miguel de Cervantes
Cristina, segunda filha de reis.A mais rebelde.A mais bonita.O sexto lugar na linha de sucessão.Talhada sob a bigorna do dever.Domada na mais absoluta contenção.Sujeita ao escândalo e à humilhação.Aprender à sua custa, cair e levantar-se de novo.
Ela foi vista como uma princesa da modernidade.Como uma das mais belas mulheres da monarquia espanhola.
Estoicamente afastou-se da família, prestou contas à Justiça, foi apupada por populares e viu-se a braços com um divórcio cujas causas se alicerçam em traições e corrupção.
Ela fez questão em estudar e ganhar uma vida própria.Licenciatura em Ciências Políticas, Mestrado em Relações Internacionais. E um estágio na Unesco.
- Como é que a devo tratar? – perguntou a repórter da revista mundana de grande tiragem.
Por um fracção de segundos, ela apercebeu-se da ratoeira que a mulher lhe lançava e respondeu placidamente:
- Como melhor entender – e esboçou o vislumbre de um sorriso.
Abraçou as grandes causas e desenvolveu relevantes projetos educativos, de protecção do património natural e artístico, foi embaixadora da ONU para a II Assembleia Mundial do Envelhecimento, presidiu à Fundação da Caixa e deu um apoio consistente e vigoroso a entidades de caráter assistencial.
Foi agraciada com condecorações que exaltaram o mérito da sua obra.
- Papá ou me deixas casar com ele ou vamos viver juntos em pecado – avisou ela ao pai, o Rei, quando se apaixonou pelo futuro pai dos seus filhos.
Estaria implícito o reparo que ela decidira não se sacrificar como os próprios pais tinham feito, dois outrora jovens princípes reais para se afogarem num casamento de dever, sem amor e que com brevidade se transformou numa união de fachada só para preservar a imagem da monarquia ferida e já de há muito em perigo.
Contraiu matrimónio com um plebeu na catedral basílica de Barcelona em 1997.Cá fora os separatistas tentaram manchar o evento, bradando pelas ruas.
- Infanta bourbona, fora de Barcelona!Infanta bourbona, fora de Barcelona!
Talvez um mau presságio.Ela ouviu mas segurou-se, armou um sorriso calmo, acenou à multidão e aos jornalistas, a todos os mirones, bem e mal intencionados e entrou resplandecente e luminosa, uma noiva linda, misto de tradição e modernidade, na catedral imensa, numa transmissão televisiva internacional que encantou o mundo e deslumbrou como um belo conto de fadas.
Do casamento nasceram quatro filhos.Três rapazes e uma menina.Os cônjuges compraram um luxuoso palacete no centro da cidade para albergar a família em crescimento.
O marido,jovem e atlético parecia um menino de coro capaz de se sacrificar pelo seu grande amor, desistir de uma carreira desportiva brilhante e seguir uma vocação empresarial.
Mas com o conhecimento das suas acções ou sem ele, por parte das mais altas esferas,Iñaki Undangarin foi acusado e sentenciado por graves delitos económicos e fez eclodir um escândalo de grandes proporções .O célebre escândalo Nóos.
Alguém próximo terá questionado.
- Sabias o que ele andava a fazer?
- Não…muito por alto.Ele nunca entrava em pormenores.Quando o questionei uma vez, assegurou-me que até o meu pai saberia de tudo.Eu estava imersa nos meus projetos.No nosso tempo livre, tentávamos criar uma família.
Figura simplesmente decorativa ou não , nas manigâncias do marido, ela foi arguida por delitos fiscais e branqueamento de capitais e alvo de chacota e ódio acirrado pelo Sindicato Mãos Limpas que desejava vê-la condenada a oito anos de prisão como coautora.
Livre do linchamento e da acusação popular graças à invocação da doutrina Botin (1), Cristina acabou por ser absolvida da acusação que contra si, impendia.
O irmão Filipe VI feito rei apressadamente, na sequência de um movimento anti-monárquico que fez ressaltar as fraquezas e excessos do rei Juan Carlos já na sua fase descendente, ciente do que estava em jogo e cioso do poder real revogou-lhe, com carácter definitivo, o título de Duquesa de Palma de Maiorca.
Em 2011, tinha sido apagada das fotografias da família Real.Desconstruiu a sua vida desafogada.Mudou-se para Genebra na Suiça.O palacete de luxo foi posto à venda.
Embora se mantivesse sempre ao lado do cônjuge, nas horas amargas da condenação e do cárcere, havia anos de rumores de traições conjugais por parte dele.
E uma vez cá fora, surgiram vulgares e feias, as fotografias do ex atleta de mãos dadas com uma mulher desconhecida, a passear, junto ao mar, ao que ele confrontado com o facto , limitou-se a responder:
- Coisas que acontecem.
Foi a gota de água.O repasto para o público, ávido de escândalos.
- Bem feito.Foi bem feito – ecoaram com mesquinhez centenas de vozes críticas que não gostavam dela só porque odiavam a monarquia ou tinham inveja ou por outra razão obscura.
Humilhada, ela assinou a declaração numa tentativa de apaziguar a refrega do novo escândalo e refastelar a especulação pública:
“De comum acordo, decidimos interromper a nossa relação matrimonial.O nosso compromisso para com os nossos filhos permanece intacto.Dado que se trata de uma decisão privada, pedimos o respeito de todos os que nos rodeiam”.
O que bastou para incendiar mais ainda a voracidade das audiências de se comprazerem com a infelicidade alheia.Programas televisivos, artigos da Imprensa, painéis e debates, comentários afrontosos e desrespeitosos nas redes sociais e um pouco por todo o lado, proliferaram sem qualquer controle.
- Não quero ver ninguém nem falar com ninguém – repetiu ela, auto infligindo-se.
Cristina, a princesa, insurgia-se contra a feira medíocre que involuntariamente suscitava, ela que nunca na sua vida tinha procurado ser o centro de nada nem estar debaixo dos focos dos projetores.
Acabou por isolar-se, não dar um passo sem poder prescindir dos guarda costas e muito raramente e contra vontade ser vista pelos espanhois.
Porém inteligente e determinada não fugiu à sua verdade.Preparou-se afincadamente para poder reerguer-se e prosseguir.
Na Páscoa,com a irmã, a infanta Elena, voaram acompanhadas dos filhos até Abu Dhabi para visitar o pai, o velho rei exilado, longe de tudo e de todos, num gesto nobre e generoso de que os grandes se apoiam mesmo quando a desdita os toca e os ameaça destruir.
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*O Autor escreve pela antiga ortografia.
(1) estabelece que não se pode julgar alguém por crimes fiscais só a pedido da acusação popular.