Bom dia de nada
Era um dia de semana normal, nada especial. Tedioso, como costumam ser as quartas-feiras -- pelo menos as minhas. Ainda era cedo e eu estava no trabalho, procrastinando. Quando o celular fez o som típico que anuncia a chegada de uma nova mensagem, peguei o aparelho imediatamente, ávido pela distração. A mensagem me deixou confuso. Era assim:
bom dia de nada
À primeira vista, enigmática, mas logo entendi que era continuação de uma conversa iniciada no dia anterior que eu, maníaco por economia de espaço na memória, já tinha deletado. Mas o estrago já estava feito. Esquecendo o contexto da frase (e também o trabalho) fiquei contemplando sua construção.
Primeiramente, a ausência de uma vírgula ou de um ponto separando "bom dia" e "de nada" criava ambiguidade. Era como se afirmasse que seria um bom dia, mas de nada. Um dia fraco. Pra mim era um prognóstico, um vaticínio de que aquele seria sim mais um dia insosso, esquecível.
Mas havia também outra coisa: espaçamento excessivo entre as palavras "de" e "nada". O espaço isolou o "nada". Isso pra mim teve um efeito poético, metafísico até. Passei a pensar sobre o Nada, envolto no vazio, anterior à criação, ao Big Bang. Quando recobrei os sentidos, um quarto de hora depois, notei olhares preocupados de alguns colegas de trabalho.
(Um conselho: se você pretende se desvincular de seu corpo físico e recuar mentalmente alguns bilhões de anos no tempo, faça isso quando estiver literalmente num espaço vazio, ou na companhia de pessoas que estejam cientes de que seu olhar vidrado é efeito de você estar pensando profundamente e não de uma crise de ausência de natureza epilética.)
Enxuguei o melhor que pude a baba que caíra sobre os formulários antes que meus pensamentos dessem outra guinada de 90 graus. O trem do pensamento acelerava de novo, passando pelo vão no meio da frase.
Trem.
Vagões.
Vagos.
Vão. Gap.
Lembrei da crônica do Antônio Cícero, na qual ele diz que a frase "mind the gap", famoso anúncio para os usuários do metrô de Londres, era para ele como um ready made poético: "um objeto já existente que, deslocado do seu contexto e colocado numa exposição ou num museu, pede para ser apreciado esteticamente."
Sim. Quando mantemos os olhos abertos, ''limpos para o espetáculo do mundo", nas palavras de Otto Lara Resende, conseguimos ver poesia até mesmo numa mensagem de WhatsApp mal escrita.
Trabalho quase no fim de um corredor mais ou menos longo, sozinho na maior parte do tempo. É fácil ficar entediado aqui. Se às vezes você também se sente assim, continue atento. Não dá pra saber quando algo inesperadamente poético virá para preencher um algum vão no seu tempo ou no seu espaço.
Penso seriamente em agradecer ao remetente da mensagem. Eu faria isso, se não tivesse deletado o contato dele.