Tudo o que a gente não esquece
Sinto que estou reunindo minhas coisinhas. É uma sensação estranha e nova. Às vezes, sentado nessa cadeira do quarto parece que estou amontoando meus pensamentos, minhas memórias, e colocando dentro de caixas.
Aconteceu num dia ensolarado desses de semana, enquanto caminhava até um dos mercados aqui perto pra comprar legumes. Quando virei na via principal, andei um pouco e passei numa esquina que hoje tem uma igreja pequena, meio espremida entre os comércios do lado, um condomínio e uma praça na frente. Acontece que não era uma esquina qualquer. Era a esquina do barbeador que meu pai ia, e que eu o acompanhei por diversas vezes. Quando criança, era um lugar diferente pra mim. E diferente também era a forma que meu pai era ali dentro. Ora, em uma barbearia de um bairro periférico, entra qualquer tipo de sujeito pra fazer uns reparos estéticos. E eu notava que ali dentro meu pai sempre assumia uma postura séria, falando o básico, mas extremamente educado. Anos depois, jovem, entendi que na verdade aquela era a postura dele pra lidar com possíveis encrenqueiros que viessem atormentá-lo, o popular enchedor de saco. Lembrei da notícia da morte desse barbeador ocorrida a uns poucos anos atrás. Parece que foi um avc. Não tenho certeza.
Quando será que foi o último dia daquela barbearia? Quem será o indivíduo que olhou para aquele lugar apertado e pensou: Ok gente, e se fizéssemos a nossa igreja aqui?
São as coisas que me peguei questionando ao passar na esquina, indo no mercado. Estava quente e eu no meu horário de almoço. Então pensei: desculpe sr. barbeador, espero que esteja bem, mas essa sensação precisa ficar pra depois. Saí andando. Só tinha uma cenoura velha e cara. Não levei.
Não é necessariamente ruim. Essa sensação pode ser até agradável. Já aconteceu também dela vir repentinamente, sentado no ônibus, indo do ponto próximo a casa dos meus pais, até a estação de metrô da região. Semana passada, fazendo esse mesmo itinerário, ouvindo no fone de ouvido o Chico dizer que todo dia ela fazia tudo exatamente igual, fui interrompido por uma lembrança muito nítida de quando estava no terceiro ano do ensino médio e pegava aquele mesmo coletivo pra chegar a escola, que ficava mais ou menos no meio do caminho. Talvez o leitor esteja se perguntando: mas o que diabos te fez lembrar de tal período?
Sim, isso mesmo, a Padaria Adriana. Bastou o motorista parar no farol que fica exatamente na entrada dela, pra eu me lembrar de detalhes em como aquele farol me incomodava nos tempos longínquos, talvez devido a minha total incapacidade de cumprir horários. Pra resolver isso era fácil. Eu só precisava de um culpado e depois precisava repetir esse culpado pra mim mesmo suficientemente bem. Depois era só convencer a inspetora do portão. O meu culpado, ou a minha culpada no caso, era a Adriana Pães e doces.
Ainda bem que o verde apareceu, o ônibus andou e eu pude voltar pro ano atual, sem inspetoras e com meu fone de ouvido. A música tinha acabado.