"Corpo Estranho"
No bairro onde eu cresci, como qualquer outro da Baixada Fluminense nos anos 80/90, parecia o velho oeste. Um lugar sem lei, talvez o maior número de assassinos ("justiceiros") por metro quadrado do Estado do Rio de Janeiro…
Num lugar escasso de entretenimento, uma das "atrações", inclusive das crianças, era ver cadáveres. Num certo carnaval (época de acerto de contas) mataram um homem no "buraco"( local de travessia da linha férrea)...
Minha mãe recebeu a notícia dada por um popular, com empolgação, e foi ver o "presunto'', meu irmão e eu fomos juntos, eu devia ter uns doze anos. Como de costume, era um homem negro, lembro de uma perfuração no pescoço…
Eu tinha uns quatorze anos, era véspera de natal, eu estava no fliperama em frente à praça quando ouvi disparos, vi correria e depois uma aglomeração de pessoas. Me aproximei e vi alguém caído com uma bicicleta entre as pernas, em meio a uma poça de sangue. Quando socorreram a vítima, eu vi que era um conhecido meu, ele devia ter no máximo uns vinte anos…
A mesma idade que tinha quando estava indo de bicicleta para a casa da minha namorada, na direção oposta da rua veio um carro em alta velocidade e "tirou um fino" de mim, desci da bicicleta e xinguei meia dúzia de palavrão para o motorista, um pouco mais a frente vi um corpo no chão, o sangue ainda escorria, tinham acabado executar. E adivinha, os assassinos estavam no carro que passou por mim...
Nos dias de votação, minha rua ficava cheia de eleitores (até a polícia se fazia presente) por causa das imensas filas que se formavam nas duas sessões eleitorais que lá tinha, pois ainda se votava com cédulas, e demorava. Mas nem isso inibiu um conhecido matador da área, que veio pedalando numa Monark e executou o namorado da minha tia em frente ao portão do prédio onde eu morava…
Neste prédio morava um vizinho muito estimado na rua, homem calmo, trabalhador, dedicado à família. Ele foi alvejado por quatro tiros quando voltava do trabalho, o autor do crime foi o dono do bar da esquina, diziam que era amante da esposa da vítima. Isso aconteceu num sábado à noite, o rabecão só recolheu o corpo no domingo por volta das 16:00. Era comum a demora do rabecão, talvez por causa da grande demanda…
Infelizmente a gente se acostumou com essa rotina macabra. Num domingo de madrugada executaram um desconhecido, exatamente no trecho da rua onde jogávamos "golzinho". Na segunda-feira à tarde, na hora do nosso futebol, ainda não tinham recolhido o corpo. Posicionamos nossos chinelos que serviam de traves a uma certa distância do corpo, que a essa altura já estava bem bronzeado após passar o dia todo sob o sol. E começamos o jogo, lembro que algumas vezes a bola esbarrou no cadáver…
Se eu fosse contar todos os que vi, e soube, infelizmente não acabaria tão cedo.