No testamento,
o corno
1. Passou o sábado de aleluia e eu não escrevi a crônica sobre o testamento de Judas, conforme prometera a alguns amigos, doidos por uma fofoca. Faço-o, porém, agora. Nunca é tarde para se escrever sobre as presepadas do apóstolo traidor. Judas está vivo. Vivo? Disseram-me, que a partir de uma rigorosa pesquisa, constatou-se que o mundo "está assim" de seus seguidores.
2. Na minha última "Queima de Judas", foi tiro pra todos os cantos, numa noite sertaneja de céu estrelado. Eu, ainda menino, em meio ao tiroteio, entrei em pânico. Estranhava o que estava acontecendo na Praça da Matriz, local onde fora erguida, em solenidade sem precedente, a forca do Iscariotes. Muita gente querendo conhecer o testamento de Judas, que, segundo informações fidedígnas, iria causar muito reboliço.
3. O porquê do arranca-rabo, contou-me, tim-tim por tim-tim, a velha mexeriqueira Esmeralda, 70 anos, minha boa amiga. Mais ou menos o que ouvi dela, passo pra vocês, meus amados companheiros de patuscadas. Vamos lá. Uma pessoa, inconformada com o testamento de Judas, que lhe deixara um par de chifres, vingou-se, atirando a esmo. A pessoa chamava-se Zeca Fortunato, casado com Dona Dorinha, senhora de uma deslumbrante beleza física e aplaudida ternura. Muitos a consideravam, pelas suas curvas femininas, um pecado em forma de mulher.
4. Mais instruída do que seu marido, e infinitamente mais ativa, Dorinha mantinha-se à frente de todos os acontecimentos sociais que movimentavam a pequenina Felicidade, cidade calma e conservadora, lá nos cafundós do sertão cearense; ou para os mais mordazes, lá onde o cão perdera as esporas. Novena da padroeira, Santa Maria dos Prazeres, quermesses, leilões, forrós, bailes chiques, lá estava a mulher do seu Zeca liderando e organizando tudo. Era, por isso, adorada pela boa gente de Felicidade.
5. Sábado de aleluia, natural que todos estivessem ligados no testamento do malvado Judas, que, como de praxe, seria lido em praça pública. Às vinte em ponto, o secretário da Prefeitura, seu Januário, iniciou a leitura. Até que num determinado trecho, disparou: "Para seu Zeca, conceituado varão de Felicidade, deixo um par de chifres, etc.,etc... Foi aí que, presente aos festejos, seu Zeca reagiu, atirando.
6. A primeira vítima foi o boneco, a mais perfeita imitação do traidor. Um tiro acertou-lhe o peito, atravessando-lhe o tórax, sem dó nem compaixão. De raspão, uma das balas atingiu o secretário Januário, que caiu, muito mais pelo susto que tomou do que pelo arranhão que o projétil lhe causara. O povo, ao primeiro tiro, correu, deixando a praça praticamente vazia. Abro um parêntese para dizer, que, no sertão do Nordeste, é assim: não se brinca com arma de fogo. Mormente se for um Smith Wesson, calibre 32, igual ao do seu Zeca. Fecho.
7. Cessado o tiroteio, começaram a circular os comentários, cada qual mais maldoso, sobre a traição da Dorinha. Ouvia-se: - "Ela parecia uma santinha! Mas, na calada, botava chifre no seu Zeca!"
Até o provecto vigário, padre Jerônimo, 80 anos, sempre se benzendo, deu sua opinão sobre o escândalo matrimonial envolvendo Zeca e Dorinha. No primeiro, no segundo e no terceiro momentos, condenou a traição, pedindo que seus paroquianos se apiedassem do seu amigo Zeca.
8. E Dorinha? Chocada com o que o testamento do Iscariotes descobrira e divulgara, recolheu-se ao lar. Temia continuar sendo apontada pela população como a mulher que botou chifre no marido, no caso, seu Zeca; coisa inadmíssivel na moralista Felicidade dos anos 1940; embora soubesse que ela não era a única, naquela paróquia, a trair o esposo e que só por sorte ainda não haviam sido denunciadas. Passou a visitar, com maior frequência, o altar de Nossa Senhora dos Prazeres, na igreja Matriz. Sob os olhares inconformdos das filhas do Coração de Maria, de mangas compridas e medalhões no peito.
9. E seu Zeca? Certo de que seus tiros o haviam tirado do rol dos cornos de Felicidade, morreu do coração, no alpendre da fazenda Mufumbo, de sua propriedade, deixando Dorinha, uma viúva rica. Mostrando-se pesarosa com o desaparecimento do esposo, Dorinha botou luto fechado que, de acordo com a época, deveria ser por toda a vida vida. Foi, por isso, discretamente aplaudida por toda a cidade.
10. No trigésimo dia da morte do seu Zeca Furtado, Dorinha compareceu à igreja, desta vez ao lado do doutor Cornélio de Jesus, Juiz de Direito da Comarca, com quem, dias depois, se amancebou, sob a condenação das ovelhas do padre Jerônimo. E foram morar longe, muito longe de Felicidade. Vejam, amigos, o que o amor é capaz de fazer.
Em tempo: Atenção! Nada disso aconteceu. É uma pequena história inventada por este cronista, no momento em que não tinha nada, absolutamente nada, para escrever.