Carta a Bukowski

Querido Bukowski, escrevo essa carta porque andei lendo um texto seu e me deparei com o mesmo dilema: como será que realmente eram os grandes escritores? Permita-me que o chame de Buko, seu nome é complicado demais para um brasileiro do cerrado como eu.

Também solicito perdão à minha intransigência ao escrever-te, eu, que não tenho bafo, um mortal nascido nos becos do bairro Amambaí, do qual você nunca leu sequer uma linha.

Mas eis-me aqui, inteiro, desnudo.

Voltando ao seu texto, nele, você imaginou Sherwood Anderson baixinho e de ombros levemente encurvados, provavelmente dono de um bafo medonho. Eu ri quando li e imaginei que José Lins do Rego era exatamente desse jeito: Rego tinha bafo (desculpe o péssimo trocadilho). Assim como Manuel Bandeira, um senhorzinho genial, mas solitário, solidão certamente devida ao forte bafo. As pessoas o apontavam de longe, “olha lá o cara que escreveu “Vou me embora para Pasárgada” e os outros olhavam e acenavam, o velhinho nada de responder, diziam então, entre cochichos maldosos: é melhor não se aproximar, dizem que ele é ranzinza e tem bafo.

Sei que falo com um fantasma e se não puder, ou não quiser me responder, entenderei perfeitamente.

Aqui embaixo da linha do Equador as coisas andam péssimas. Nunca foram ideais, mas ultimamente a ignorância tem extrapolado, parece que deixaram abertas todas as latrinas dos esgotos e, em nome dessa tal liberdade, temos que aturar uns sujeitos de bíceps enormes e cabeça de amendoim falando o que não sabem. Eles são muitos, como disse também o Nelson Rodrigues. Já ouviu falar do Nelson? Outro dia podemos falar dele, por ora, bastam as novidades. Mas digo logo, o anjo pornográfico não tinha bafo.

Antes que me esqueça, estourou outra guerra. Esses russos não conseguem viver sossegados! É que a Ucrânia andou se assanhando para o ocidente, quis virar Europa e um tal de Putin ficou putinha e não quis saber de inimigos perto do seu terreno. E o bicho só anda armado, de bombas e de venenos. Sobre essa guerra, nas redes sociais, cada um dá razão para um lado, tem esquerdista falando a mesma língua de extremista de direita, sob olhares surpresos de progressistas e conservadores.

Quase tudo é guerra, Will Smith esbofeteou Chris Rock na cerimônia do Oscar, foi um tapa de estralar, de deixar boquiabertas as outras estrelas.

Estrelas, estralar...isso dá para pensar num verso...depois vejo isso.

Ao menos esse bofete do Will serviu para as pessoas esquecerem de um mendigo que saiu contando as estripulias sexuais que teve com uma moça bastante atraente. Desde os tempos de criança, quando um vizinho saiu arrastando a mulher pelos cabelos, em plena luz do dia, armado pela suspeita de traição, eu não via uma mulher ser tão exposta.

Ah meu caro Buko, Will podia dar uns tabefes nesse mendigo também.

Certamente que o amigo já deve ter se enturmado com a Hilda Hilst, sempre achei vocês dois parecidos, com a diferença que ela escrevia melhor (desculpe a sinceridade) e não tinha ressaca, embora os porres homéricos.

Ah, você bem poderia ser o senhor Hilst. Não sei se rolaria muito sexo, mas o porre seria dos bons, do tipo de fazer acordar no outro dia sem se lembrar de nada da noite anterior. Será que devo tocar nesse assunto? Sabe, nos anos oitenta eu...ah...é melhor não falar.

Mas nem tudo é ruim, Gilberto Gil foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Não conhece o Gil? Quando estiver só, procure olhar na direção da Bahia, até encontrar um homem preto lindo, dono do sorriso tão encantador que parece nem ser gente. O Gil é assim. Você também pode encarnar perto de alguém dirigindo um carro, tome assento, procure uma coisa chamada spotify, todo carro tem, acesse uma música dele chamada “Se eu quiser falar com Deus”, é linda demais. Aliás, você já falou com Deus, ou ele não recebe fantasmas de poetas bêbados rabugentos? Se o amigo estiver no inferno, não precisa mandar lembranças, cá embaixo, a cada esquina, encontro com um diabo.

Até agora tem gente reclamando do Gil na Academia de Letras, como se o Gil precisasse, como se não fosse ao contrário, um tanto estranho o genial Gil passeando ao lado de quem nunca escreveu porra nenhuma e se diz imortal.

Sabe, Buko, eu não sei se tenho bafo, mas fico sempre me testando, diversas vezes assopro a boca na mão e fico cheirando, o resultado é um assovio de alívio, se tenho bafo, não o sinto.

Drummond não tinha bafo e não quis ser imortal, mas é imortal mesmo assim. Ah, não sei se me explico bem, é que andei lendo muito Clarice ultimamente e ela escrevia envolta numa nuvem de perfume escapando da boca, sem absolutamente nenhum bafo. Eu amo aquela mulher. Se a encontrar, diga isso, sei que não mereço, mas diga.

Dia desses, acordei estupefato, com um soneto na cabeça, corri para o computador e escrevi de uma só vez, rindo porque nunca soube compor poemas, muito menos soneto e lá estava minha obra prima.

Voltei a dormir me sentindo o Manuel Bandeira sem bafo.

No outro dia, tamanha decepção, o meu soneto tinha dono, começava assim “O amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente...”

Camões tinha bafo, meu caro Buko, tenho certeza que sim.

E a política aqui debaixo do Equador está uma gastura: se fosse vivo Olavo Bilac seria candidato da terceira via à presidência da república, isso se não fosse impedido pelo revólver cintilante nas mãos trêmulas de Raul Pompéia. Pompéia seria um rigoroso defensor do atual presidente. Pense nessa cena, Pompéia vestido com a bandeira pátria como se fosse uma capa moral e espumando ódio pelos bigodes. Seria tão bom dar umas risadas ao lado de Lima Barreto.

Aliás, Barreto com certeza tinha bafo, mas o álcool era tanto que eliminava as bactérias podres e então ele podia beijar a donzela do cais do porto sem sentir medo.

Estamos perto de completar cem anos da semana de arte moderna de São Paulo e um escritor ainda vivo, sem bafo, danou a falar que foi um evento sem importância, afinal, segundo ele, o Rio de Janeiro não participou.

Preciso estudar esse assunto e voltar a falar contigo brevemente. O que sei, por enquanto, é quase nada e muita confusão na cabeça.

Anita Mafaldi tão bela e meiga, certamente cheirava morango...ou não...Sempre confundo Anita com Tarsila do Amaral. Uma delas desenhou uma mulher torta, cabeça pequena e dos pés gigantes, ao lado de um cacto e no fundo um belíssimo Sol. Olhando aquele quadro, tive uma epifania, parece um desenho fácil, mas Buko, nada tão genial é fácil. Ora, o Sol é uma bola, um pé gigante pode ser torto, e o cacto não passa de um risco com pequenos espinhos. Fui tentar copiar e tudo que consegui foi um Sol quase quadrado, uma mulher sem cabeça e uma árvore torta (ah, lá venho eu novamente com essa árvore torta! Ela me persegue).

Nunca soube desenhar nada. Certa vez desenhei formigas, coloquei um papel branco e enchi de pontinhos chifrudos, mostrei para uns amigos e eles desdenharam, falaram que a caneta tinha estourado e os chifres eram coisa do demônio. Já percebeu como tanta gente relaciona escritores aos demônios? Também tentei desenhar o homem de sete cores, mas só tinha cinco cores e meu homem ficou parecido com uma mulher. É que naqueles tempos eu bebia conhaque e, você sabe Buko, conhaque apaga todas as diferenças.

Já ocupei demais sua fantasmagórica presença. Pode ir se deitar. Logo eu também vou, assim que a nuvem se dissipar.

Mas antes, deixo meu exato desejo: quando eu morrer, daqui uns cinquenta anos (é nesse instante que meu deísmo se torna latente. Então rezo e assim espero), algum escritor novato escreverá sobre mim e esse meu campo tão grande, dirá que nunca tive bafo e agora não passo de um fantasma, reles mortal.

E então te encontrarei, amigo Buko, uns goles de uísque, outros de cachaça, daremos boas risadas, daquelas de fantasmas gargalhando, fazendo tanto barulho que os mortais pensarão que é o silvo do vento...

ANDRÉ LUIZ ALVEZ
Enviado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ em 22/04/2022
Código do texto: T7500889
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