Quem tem medo de poesia?
A cidade é João Pessoa, na Paraíba, e o espaço se chama Sarau Poesia Solta, movimento de poetas independentes, liderado por Igor Gregório e Quelyno Souza. Jovens e elementos mais antigos, uns bebericando vodca com laranjada, outros entretidos em rodas de coscuvilheiros, alguns, como você que me lê, procurando saber no Google o que significa coscuvilheiro e eu adiantando: é a pessoa que promove o mexerico, falador da vida dos outros. Uns poucos escutando o que o poeta tem a dizer, ele que compartilha do mesmo espaço de fala com o cordelista, a mocinha estudante de letras, o velho sonetista saudoso e a madame curtidora de Castro Alves, Gonçalves Dias e Casemiro de Abreu, ao lado de seu “love” mais ou menos culto, admirador de Pablo Neruda, Vinícius de Morais, Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade. Poetas e prosadores, realistas e sonhadores, alguns bêbados de criatividade, outros espalhando mensagens desconexas, lendo no celular o poemeto que acabou de criar, melhor dizendo, que abortou naquele instante, a partir do embriagamento.
Nesses tempos difíceis de insociabilidade, as rodas de poesia se formam mais em torno de lutas do cotidiano, leituras poéticas de resistência e ebriedade, dentro da palavra de ordem: “eles são muitos, mas têm medo de poesia”. Na cidade Eulápolis, Bahia, outro grupo formou seu sarau poético com o nome de “Quem tem medo de poesia?”. A tertúlia se dá no Ponto de Cultura Viola de Bolso, comandando pelo poeta Sumário Santana, tio da poeta Clareanna Santana, jovem mestre em Sociologia e poeta que se queixa de ser feminista, antifascista e antiniilista, a partir da constatação de que os niilistas vivem de forma inautêntica, porque renunciam a si próprio em nome do céu, do Estado, da família, da sociedade. Essa poeta novata conversou comigo no programa “Alô comunidade!”, na Rádio Tabajara da Paraíba AM, que vai ao ar todo sábado às 11 horas. Ela mora em João Pessoa há dezesseis anos, e foi aqui que começou a gestar sua poesia que circula entre o dramático, o político e o erótico. Apareceu no Poesia Solta e lá permanece, fazendo “tempestade em corpo e alma”. Clareanna Santana acaba de lançar “Artérias”, seu primeiro livro impresso, sessenta e nove poemas curtos, com temas apanhados no redemoinho de vento das angústias pessoais e estupefaciências coletivas, feito o assombro das pessoas diante do trânsito intransitivo desse tal de novo normal. Ela apresenta sua primeira publicação solo, depois de plantar seus versos em fanizines, e-zines, revistas literárias, coletâneas e antologias poéticas.
Outro iniciante na missão de fazer brotar uma obra poética me chega de Pilar, agreste da Paraíba. Chama-se “Prelúdio” o primeiro livro de Evanio Teixeira. Eu escrevi o prefácio, onde faço o besta enunciado: A cabeça poética de Evanio Teixeira fabrica versos amargurados e belos, nascidos sem médico nem parteira, cabendo com folga nos versos livres ou aprisionados pelo metro do cordel. Falando em prisão, a moda é dizer que estamos resgatando o cordel. Assim sendo, quem sequestrou o cordel pra ele ser resgatado? Pergunta do poeta Marco Haurélio.
Nessa pegada, eu próprio ando rabiscando um livreto cordelesco onde faço a narrativa da criação da Rádio Comunitária Araçá, da cidade de Mari, na Paraíba. Foram dias de luta, instantes de glória, momentos de tensão e medo, acusei golpes quase fatais, “vento pra todo lado, canoa sem rumo”, povo sem palavra. Na rádio popular baixou a censura, a repressão dos donos da voz. Fui preso e processado, tive que vender meu Chevette velho pra cobrir gastos, prejuízos pela interrupção do sinal da emissora diante da violência policialesca do sistema. Nossos equipamentos foram sequestrados pela polícia. Depois, cada mano e cada mana das quebradas se juntaram, o padre comandou a resistência, a rádio voltou a ser o orgulho da cidadezinha. Daqueles tempos, guardo os nomes de todas e todos enfileirados em nossas brigas comuns pela democratização da comunicação no Brasil, entre eles o parça Chico Lobo, que morreu no começo deste abril em São Paulo. Para o radialista comunitário paulistano Jerry Oliveira, Chico Lobo está no topo da lista dos primeiros formuladores de um programa político para a democratização da comunicação no Brasil. Botaram no ar mais de 20 mil transmissores de rádios livres e comunitárias país afora, ainda segundo Jerry, citando muitos nomes em todas as unidades da Federação. Na Paraíba, Jerry menciona Dalmo Oliveira, Sônia Lima e Fábio Mozart como seguidores da filosofia comunicacional democrática de Chico Lobo. “Foram estes companheiros e companheiras que saíram pelo Brasil afora, montando rádios e dando voz às comunidades, bravos combatentes que peitaram a estrutura mais conservadora da sociedade brasileira que é a ABERT e o monopólio das comunicações no Brasil, seguindo o exemplo de Chico Lobo e outros heróis”, afirmou Jerry Oliveira. O povo subalterno fazendo poesia de resistência, contando sua versão dos fatos. De vez em quando, a voz dos oprimidos invade e interfere na “Voz do Brasil”.