Bar Noel

Sábado de sol, queria estar na praia. Briga com namorado, mau humor, nada melhor do que estar na minha solidão em frente ao mar.

Seria né! Mas não, me rendi, e juro que foi minha última vez que fiz isso comigo, a aceitar um convite/ chantagem emocional de uma amiga para acompanhar ela num bar em pleno inicio da tarde quente, suando, no centro vazio da cidade.

Noel é um bar, velho, feio, pequeno, sujo. E este é seu charme. Fica no meio de uma parte esquecida da cidade onde pessoas que se esqueceram de si mesmas também navegam nesse mar de abandono.

O que faz Noel viver é o Samba, lógico..sempre o samba! Personagens históricos vivem lá, um em especial, um senhor negro de mil anos vestido de roxo, de chapéu, dança como se tivesse na passarela no Rio. Tenho dúvidas se ele não faz parte da minha imaginação e só existe ali naquele bar.

Chegamos cada uma em seu carro, eu antes como uma típica virginiana e não aprendo a deixar de ser tão pontual mesmo em compromissos que não precisem desta disciplina. Fico ali sozinha no bar fingindo conforto e descontração. Peço uma água, ou talvez um Chopp, sei lá, nem sei, não importa...me embriagar naquela hora está mesmo fora dos meus planos.

Tento me conformar que não fui para a praia numa tarde de sol e digo a mim mesma que vale a pena a ter atendido o pedido de uma amiga. Ela queria companhia para ver alguém, um dançante de samba, cheio de silêncio e passos lentos, desenhados com sua profundeza onde o tempo inexiste e os corpos se fundem na canção. Mas não se enganem, é só samba. Assim que encerrava a música, descolava e seguia em seu silêncio e solidão.

Aos olhos apaixonados de minha amiga, ali tinha algo, talvez um interesse, um flerte, um amor a ser correspondido. Para quem dança, entende que o amor dele já tinha dono, não era personificado em uma pessoa, era na música, no seu próprio corpo ao encontro do outro.

Eis o erro, ou melhor, a ilusão de qualquer mulher que dele se aproximasse. Poderia se sentir completamente envolvida e sentindo reciprocidade , paixão , desejo, mas não entendia que terminado os acordes, terminava ali também o breve romance, e que venha o próximo corpo, a próxima música. Não ele não é superficial, nem aproveitador, nem leviano com as mulheres. Seu corpo tem dono, sua alma também e ele é extremamente fiel... ao Samba.

Neste contexto ficamos perto da roda de samba, apertadas, homens suados vinham e iam, eu no dilema se aceitava convites para "estar no clima ". Minha amiga focada nele. E ele sabia, parecia pronto para chamá-la para uma próxima dança, o que sem dúvida lhe daria pano pra manga do seu romance fictício. Eis que o personagem vestido de roxo se apresenta antes, e a tira para dançar. Sobra eu ali, parada, sem graça. Ele vem e me oferece sua mão. Nestes Lugares os olhares e gestos são mais presentes e fortes que palavras, não se conversa, não se troca telefones, não se joga com os verbos, só se mostra seu movimento e para quem entender, entendeu. E isto basta.

Fui dançar, constrangida, quase pedindo que eu trocasse de par, mas fui. Dançava bem de fato, sabia conduzir sem impor, entendia para onde meu corpo também queria ir, e lá fomos nós sambando em comunhão. Eu mais preocupada com a amiga do que com meus pés, mas no automático dou conta. Dança de salão não se tem fidelidade de par, não se considera seu ou sua ninguém, não é espaço para ciúmes e apegos. O objetivo é curtir, trocar, e dançar com quem se apresentar e pronto, obrigada e adeus. Minha amiga não era do Mitiê, tentou , mas este foi definitivamente seu fim. Não entendeu as regras, e fez o que eu só imaginaria numa cena de filme ou numa novela muito dramática.

Me cerrou os dentes, me olhou fulminante. Terminou a dança com seu par-personagem, pegou sua bolsa e saiu correndo esbravejando palavras ao vento de um fim de amizade.

Ciúmes, posse, projeção, tudo junto e mal misturado. Cada um vê no outro aquilo que tem dentro de si mesmo. Viu sedução onde não tinha, viu desejo onde não senti. Viu o que ela queria ser e não me viu, viu em mim seu reflexo torto num espelho quebrado por passos mal dados numa sala de samba ao ar nada livre.

Acusou me de tudo que ela não tem coragem de ser, viu em mim o que quis. E eu ali, com meu humor abalado, querendo a paz de um mar, pensando no meu namorado, querendo que o tempo limpasse nossas mágoas e voltasse aos seus braços morenos e seus cabelos compridos ao vento.

O drama se fez, a amizade se rompeu . Mas a dança nunca se desfez.

A vida traz coisas engraçadas depois das tragédias.

Num ano qualquer, anos depois, ano novo, vida nova, conheci ou melhor , fui apresentada a um novo amigo...e adivinhem quem é!

Sim, o moço silencioso do bar, que dança com a alma , que compartilha sonhos que tem fim, que duram notas de samba, mas não dura ninguém mais dentro de si.

Juli Sell
Enviado por Juli Sell em 21/04/2022
Código do texto: T7499947
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