MAURÍCIO (1)

 

O avanço da idade, no ser humano, vai tornando o futuro cada vez mais curto e o passado cada vez mais longo. Talvez seja esse o processo que torna os velhos saudosistas. Reviver o passado, ao menos na memória, parece ser a única forma de se conectar a um longo período de tempo que não podemos mais esperar do futuro.

 

Há alguns meses, fuçando na internet, entrei no site do Colégio Paulistano, que ficava no bairro da Liberdade em São Paulo, onde completei o curso ginasial, no ano de 1961. Ali me deliciei com os comentários de ex-alunos, de diversas turmas, falando dos professores, da disciplina imposta pela escola e outras histórias da época. Tudo isso aflorou em minha memória, como se estivesse ocorrendo hoje, e despertou em mim um sentimento saudosista que me impeliu a fazer também meus comentários, que ali ficaram registrados para quem mais fosse curtir suas lembranças de tempos antigos.

 

Ontem, para minha surpresa, recebi uma mensagem de alguém que, tendo lido meus comentários, falava de suas lembranças da época em que éramos colegas de turma no Colégio Paulistano, no final dos anos 50. Puxei pela memória, tentando me lembrar de “algum” Maurício, nome pelo qual ele se identificou. Não consegui. Entrei no seu perfil do Facebook, onde fiquei sabendo de aspectos interessantíssimos de sua vida mais recente - ou menos antiga - mas incapazes de despertar em minha memória a identificação de Mauricio com qualquer colega de turma de quem eu pudesse me lembrar. Olhava sua foto e tentava adaptá-la a um rosto 63 anos mais jovem que eu pudesse ter conhecido na época. Nada!

 

Mas alguma coisa acontecia em mim: um sentimento indescritível de profunda inquietação que me levava a procurar, compulsivamente, a lembrança de quem era Maurício. Depois de muitas tentativas mnemônicas, finalmente me veio uma sugestão, muito incerta, de quem ele poderia ser. Voltei ao Messenger e fiz a ele uma pergunta chave, que poderia desvendar o mistério. A resposta confirmou minhas suspeitas. Sim, me lembrava de um garoto de seus 12 anos, cujas feições se adaptavam à sua versão atual septuagenária.

 

Minha inquietação se transformou em um sentimento de êxtase, incompreensível, que me surpreendeu, como se, sem eu saber, alguma droga alucinógena tivesse invadido meu corpo. Bocejava como sempre faço quando alguma energia mais sutil permeia meu corpo. Perquiridor incorrigível que sou de minhas próprias manifestações psíquicas, iniciei um processo de autoanálise, tentando desvendar o que estava por trás dessas sensações.

 

E assim se deu o curso do meu raciocínio:

 

Na época, há mais de 60 anos, eu via Maurício como um garoto que andava em más companhias, briguento, arruaceiro, com um sotaque interiorano e que, como regra geral, não respeitava as convenções do “sistema”. Não era companhia para mim, criado que fui no ambiente sagrado do politicamente correto, e exaltado pelos parentes e amigos da família como um exemplo de educação, honestidade e respeito ao próximo. A única atenção que eu dava a Maurício era o desprezo tácito de quem se julgava pertencer a uma casta superior. Hoje, não me lembro de ter trocado qualquer palavra com ele.

 

Para não ser impreciso, me lembro sim, de um evento, marcado até hoje com muita clareza em minha memória, em que ouvi dele uma descompostura pela minha atuação num jogo de futebol, que parece ser, até hoje, seu esporte favorito. Era a primeira aula de Educação Física, do primeiro ano do ginásio. O professor Menezes, decidiu que deveríamos dividir a turma em dois times que disputariam uma partida de futebol, esporte que eu nunca tinha praticado. Mas minha postura séria sugeria uma certa liderança, o que me rendeu a posição de capitão do time, quase que por aclamação. Descemos para a quadra e o jogo começou. Só me lembro de correr de um lado para outro atrás da bola, tentando acertar um contato com a redonda, com qualquer parte do corpo que conseguisse. O resto da pelada escapa da memória. Pela observação de desprezo de Maurício logo após o jogo, ficou clara a decepção do grupo com o desempenho nada atlético do jogador e com a absoluta ausência de liderança do capitão, os dois reunidos em um único pateta. Paguei o primeiro e talvez o maior mico de minha carreira de estudante. Na outra e única partida de futebol que joguei, muitos anos depois, quebrei um braço num tombo. Nunca mais joguei futebol.

 

Minha autoestima sofreu um grande golpe nesse dia. Mas não foi a única pancada que meu amor próprio levou ao longo de minha infância e adolescência. Maurício, aguarde um pouco até que esta última afirmação seja esclarecida.

 

Minha família - pai, mãe, avó, irmão e irmã – vivia em quase perfeito equilíbrio, como raramente se via ou ainda hoje se vê. Meu pai, homem criativo, de iniciativa, inteligente e educador por natureza, seguia uma linha de disciplina que hoje seria considerada “linha dura”. Amava sua família como não conseguia expressar, restando aos filhos a certeza inconsciente do amor, mas a carência de sua demonstração. Me lembro de muitas lições de caráter e de poucas demonstrações de afeto. Eu o respeitava como um semideus, cujas palavras e atos representavam o exemplo da conduta perfeita. O que dissesse era verdade! E, por isso, algumas coisas que ele disse marcaram minha vida.

 

É burro, mesmo!...” Foi sua expressão quando numa conversa em família, de fim de almoço, falávamos sobre geografia, e eu confundi o canal de Suez com o canal da Mancha, ou vice-versa. Saí da mesa para o meu quarto, onde, depois de esmurrar o guarda-roupas, chorei em prantos, tamanha a mágoa que meu ídolo me causara. Se ele dizia é porque era verdade, meu inconsciente concluía.

 

Família 1; autoestima 0.

 

Meu irmão era o intelectual, comportado, embora rebelde. Eu era o artista, arteiro, mas conformado. Apanhava de cinta do velho, sempre que minhas artes transformavam em realidade a ameaça de minha mãe: “você vai ver quando seu pai chegar! ” E meu pai sempre chegava. Minha avó, na minha presença, comparava meu irmão a mim para as visitas: “O ‘W.’ é um amor, ordeiro, caprichoso, obediente.... mas este aqui é terrível!!”, dizia ela em italiano, apontando para mim.

 

Família 2; autoestima 0

 

Era premissa fundamental na relação familiar, que o pai é o melhor amigo dos filhos. Tive que descobrir, com muita mágoa, que não era bem assim. No quarto ano do primeiro grau, havia uma garota por quem me apaixonei secretamente, como me apaixonei por tantas outras garotas, na adolescência e na pré-adolescência. Mas essa era especial. Eu ia completar 11 anos e haveria uma festa de aniversário, como era de hábito. Eu queria a presença daquela garota de qualquer maneira. Minha festa não teria graça nenhuma sem a presença dela, até porque, naquela época, em festa de criança só adulto entrava.

 

Graças a Deus, meu pai era meu amigo! Contando com isso, fui a ele confessar meu amor inconfessável. Sua reação não me decepcionou. Até me deu dinheiro para as passagens de bonde - ida, para uma pessoa e volta para duas - garantindo que iria cumprir a promessa que o fiz fazer de não contar a ninguém meu idílico sofrimento. Fui buscá-la, já tendo ela aceito o convite, embora considerando-o apenas uma demonstração de amizade. Essa vertente da história é pouco importante para o contexto em questão, mas, para amarrar as pontas, o fato é que minha declaração de amor não foi correspondida.

 

Meses depois, como fazíamos com frequência, fomos visitar meus avôs por parte de pai, que moravam em Santos-SP. Família reunida, tios, primos e primas, a tarde alegre trazia aquela descontração agradável que libera os impulsos muitas vezes reprimidos. Em meio às risadas e gozações inofensivas, uma das primas se dirige a mim, meu pai presente, imitando uma sofrida dor de cotovelo: “Oh! Estou apaixonado, preciso da minha amada ao meu lado!...” Ou algo assim... Meu segredo tinha vasado! Meu amigo me traíra. Eu não merecia a amizade dele. Afinal, quem era eu para pretender que merecesse?

 

Família 3; autoestima 0.

 

Até os cinco anos de idade eu acreditava em Papai Noel. Todo Natal os tios mais chegados se reuniam com a família em minha casa. Era uma festa! A hora mais aguardada era meia noite, quando todos se recolhiam num dos cômodos da casa para permitir que Papai Noel, sem que ninguém atrapalhasse, colocasse os presentes ao pé da árvore. Depois de uns minutos de espera, meu pai e um tio saiam para ver se Papai Noel já tinha cumprido seu papel. Estranhamente demoravam um pouco, mas qualquer desculpa era aceita quando eles voltavam com a informação de que a árvore já estava abastecida. Que emoção! Quão convincente era a performance! A farra da abertura dos pacotes que se seguia marcava mais ainda a realidade deliciosa da visita de Papai Noel. A primeira parte do ano passávamos curtindo os presentes ganhos no Natal passado. A segunda parte, curtindo a expectativa do próximo.

 

Eis que, às vésperas do Natal do ano anterior ao que eu completaria 6 anos, minha mãe me chama para sair com ela, o que não era incomum. Andamos de loja em loja, no bairro da Vila Mariana, onde morávamos, minha mãe fazendo compras enquanto eu me distraía ingênuo com os brinquedos e outras mercadorias à venda.

 

Era muito pacote. Embora o centro comercial fosse próximo à nossa casa, um taxi foi necessário para carregar tudo. Já em casa, minha mãe começou o processo de embalagem dos pacotes com papel de presente, que na época as lojas só disponibilizavam para quem o comprasse por metro. Aí alguma coisa me incomodou: “mãe, pra que tanto presente? Quem faz aniversário? ” Com uma expressão contrariada, com certeza condenando a si mesma, e, sem olhar para mim, ela simplesmente respondeu: “agora você já sabe quem é seu Papai Noel”; palavras tão marcantes que me lembro delas textualmente. Tóóiimmmm!!!!.... Traumático! Tripla decepção: 1. Papai Noel não existe! 2. Meus pais me enganaram durante todo este tempo! 3. Eu sou um idiota em acreditar em Papai Noel!

 

Família 4; autoestima 0.

 

Houve um momento, não sei precisar quando, em que minha mãe contratou um tapeceiro para trocar o forro dos estofados da sala de visitas. Muito simpático, me entretinha com histórias e conselhos enquanto trabalhava. Um desses conselhos me rendeu mais uma decepção comigo mesmo. Detalhista e observador, o tapeceiro me lembrou de um suporte sobre o fogão em nossa cozinha que abrigava a caixa de fósforos. “Você observou - disse ele - a dificuldade que sua mãe tem para pegar os fósforos. A borda do contêiner da caixa de fósforos é muito alta, cobrindo praticamente toda a caixa, e impedindo que ela seja pressionada com o dedo para ser retirada. Já vi sua mãe virando o suporte de cabeça para baixo para fazer a caixa cair. Quer fazer uma surpresa para sua mãe? Pegue uma serrinha e recorte a madeira do contêiner um U na borda, facilitando o acesso à caixa”.

 

Minha habilidade manual sempre foi igual ou pior que a de um orangotango. Não tivesse eu que focar esta escrita no tema que lhe é objeto, poderia contar inúmeras histórias de boas intenções que resultaram em prejuízo ou desastre. Mas, naquele momento, eu queria provar meu valor para minha mãe. Queria mostrar que era capaz de fazer algo que a agradasse, e transformar, pelo menos uma vez, uma pancada em elogio.

 

Peguei uma serrinha, retirei o suporte do prego na parede, e o levei para o quarto do fundo, onde meu irmão e eu estudávamos e fazíamos os deveres de casa. Ali, iniciei minha primeira e única arte em marcenaria: fazer um U na borda de um contêiner de caixa de fósforos. Após muito esforço e pouco resultado, o máximo que tinha conseguido foi um U torto e chanfrado, em degraus, que indicavam perda total do suporte dos fósforos. Em pânico, pensei em pegar uma lima para aparar o chanfrado e tentar endireitar o U. Mas não deu tempo. Minha mãe entrou no quarto e fechou a cara, contrariada ao vislumbrar seu filho desastrado com o suporte de fósforos arruinado e a serra nas mãos. “O que é isso!? Onde você está com a cabeça!?. Por que está estraçalhando isso aí, menino!?”

 

Família 5; autoestima 0

 

Nunca deixei de amar e respeitar meus pais, nem jamais os culpei por estes incidentes e outros de cujos detalhes não me lembro, até porque minhas aptidões, até hoje mais filosóficas e artísticas do que práticas, sempre foram grandemente reconhecidas por eles e muitas vezes por outros invejadas. Mas, em minha sensibilidade de criança e adolescente, parece qua as mágoas prevaleceram.  Sou filho de uma família normal, de classe média baixa, que sempre garimpou seu sustento à custa de muito sacrifício, e sempre disponibilizou recursos, amparo e amor a seus filhos, todos inteiros, saudáveis, pais/mãe de família e com boa formação pessoal e profissional.

 

Mas o psiquismo das pessoas é condicionado pelos efeitos das experiências de vida, em confronto com a personalidade de cada um. A reação às experiências é absolutamente pessoal. O que foi ataque à minha autoestima poderia ter sido encarado como desafio a ser vencido. Mas não foi assim que eu reagi. Eu acreditei nos julgamentos pontuais de meus pais, e identifiquei em mim uma pessoa com dificuldades para aceitar e para superar suas próprias limitações.

 

Só até me tornar adulto.

 

A forma como superei meus problemas existenciais, após a adolescência, vai desde a psicoterapia até a o desbravamento das dificuldades que surgiam como resultado de minha timidez psíquica decorrente da baixa autoestima. Neste processo, meu esforço para romper minhas próprias barreiras foi tão intenso que acabei por me transformar no antípoda do que fui na infância e adolescência. Tive momentos de arrogância, de presunção, de descortesia e de desrespeito. Vivi a antítese da humildade, que eu confundia com a humilhação que eu mesmo me impus até então, como fruto das experiências descritas.

 

Como recurso para desobstruir minha psique, fiz jorrar o jato de toda essa sujeira acumulada, sobre a cabeça dos que me rodeavam, a quem eu amava e por quem era amado: esposa, filhos, amigos, parentes. Como um Super Homem que destrói uma cidade para salvar um de seus habitantes, eu tinha que salvar meu ego, machucado que estava pela baixa autoestima, e, para isso destruí uma parte dos relacionamentos com pessoas que reconheciam este ego como íntegro, maduro, cativante e consciente. E assim ele era, mas para assim se reconhecer tinha que destruir as barreiras que impediam este reconhecimento.

 

Só até me tornar maduro.

 

Até próximo dos 30 anos eu só conseguia me livrar das consequências dos traumas vividos na infância, quando podia distribuir o contraveneno da arrogância, que escondia minha timidez oculta.

A maturidade e as experiências de realização profissional e nas relações interpessoais, com amigos e parceiras, afastaram quase todos os vestígios do incômodo psíquico que me atormentava na juventude. A compreensão da vida sob um prisma de magnanimidade tratou de reconciliar-me com meus pais e comigo mesmo. O jogo família vs. autoestima passou a ser dominado pelo amor à família e pela autoestima consciente, que, embora tardiamente, consolidou-se.

 

Foi neste cenário de paz de espírito, curtindo meus 75 anos bem vividos e muito proveitosos para o meu entendimento do sentido da vida, que reencontrei Maurício na Internet. Minha visão infantil de um Maurício mau caráter e desprezível era marcada pelo senso de defesa que irradiava das minhas vulnerabilidades. A liberdade e a audácia de Maurício refletiam em mim como ofensas ao meu pudor, e deviam ser, no mínimo. ignoradas. E eu ignorava Maurício, mas para acobertar minha admiração secreta e inconsciente que no fundo invejava sua liberdade interior e seu arrojo.

 

Durante minha vida toda, desde que perdi contato com Maurício, em algum lugar bem escondido de minha memória inconsciente, que jamais aflorou, Maurício continuava sendo o mesmo menino sem escrúpulos que mal sabia da minha existência. Eis que, de repente, 63 anos depois, Maurício retorna à cena e encontra seu colega de quem lembra, além do nome, detalhes de sua vida que não me recordo de jamais ter mencionado a ele. Como um garoto inocente, feliz de encontrar seu amigo, Maurício, aos 75 anos, como eu, foi buscar seu colega de classe para compartilhar lembranças felizes dos anos 50.

 

Como se o tempo não existisse, o confronto entre o que restava nos recônditos de minha memória e o Maurício que guardou meu nome, valorizou informações pessoais minhas que de alguma forma passei a ele há mais de 6 décadas, me sensibilizou profundamente. Parece que um filme com a extensão de décadas, somente agora terminou. Acabo de descobrir que Maurício, de alguma forma me respeitava, gostava de mim. E eu correspondia com o desprezo da minha insegurança.

 

Em êxtase, tirei Maurício menino da gaveta oculta, e guardei na parte mais viva de minha memória o Maurício amigo, realizado, independente, feliz com a vida, ansioso por um reencontro.

 

Bem-vindo, ao meu mundo real, meu querido Maurício!



(1) Divulgação da foto autorizada