Música: Cordas, softwares e cyberespaço
A princípio, a história nos conta que instrumentos para emitir sons foram criados por sociedades primitivas afim de se conectar com as divindades que as mesmas acreditavam. Na mitologia grega, conta-se que a flauta havia sido inventada por Pan, a cítara por Apolo e a lira por Mercúrio, mas a história pragmática e fidedigna da origem de cada instrumento esconde-se visceralmente dos olhos do mundo, pois desde as eras mais remotas, em múltiplas sociedades e em escala quase simultânea, os instrumentos musicais foram surgindo - e há quem defenda que a prática de musicalização tenha nascido antes da linguagem verbal.
Por um instante, como nos tempos de criança, imaginemos juntos adentrando uma cúpula alada viajando pelo tempo espaço, de trás para frente. Enquanto peregrinamos pelo curso do tempo, olhamos ao nosso redor, observando através do vidro as maravilhas que a esfera musical nos trouxe. De maneira leviana, destacamos os arcaicos e suas diversas venerações: O período barroco, renascentista, clássico, romântico, contemporâneo e além. Infindáveis baladas, serestas, cânticos dos quais envaidecemos e conhecemos, mas que não temos conhecimento de seus respectivos autores. Da ópera ao Blues, do Jazz ao multifacetado Rock n’ Roll, do Folk ao Country, do Hip-Hop à música eletrônica. Armazenados em objetos agora anacrônicos, como o LP’s no final da década de 40, as fitas K7 nos anos 60 e o CD no começo de 80, findando hoje num formato imaterial, que não arranha, não quebra e que aos poucos faz sumir seus antecessores das prateleiras das lojas. Parafraseando papai, “o chiado da vitrola tinha o seu charme”.
Pairamos a cúpula no ar e avistamos o presente, globalizado, onde muitos de nós usufruímos da tecnologia computacional. Se analisarmos bem, “erudito” e “dom” são termos que se tornam cada dia mais obsoletos, pois conforme a tecnologia avança, métodos para criar sons sintéticos vão dando crédito também a indivíduos carecidos de talento, colocando artistas artificiais em patamares elevados. Por experiencia própria, trabalhando com mixagem, digo que não mais é necessário ser um exímio tocador de viola, ou um exímio cantor, pois já existem programas que fazem este trabalho por você. A materialidade agora abre caminho para um mundo invisivelmente maquinado, escondido atrás de cortinas enquanto nós desfrutamos de produtos defronte a ela. Não é necessário mais pôr as mãos em um instrumento, pois há softwares que armazenam um acervo de instrumentos dos quais nem precisa ter em casa ou ter alguma vez na vida avistado um. Se nossa cúpula pudesse viajar para o futuro, não seria histeria pensar que veríamos uma época em que não mais mediremos esforços para querer adquirir quaisquer conhecimentos, pois poderemos fazer download de mil horas de estudo de determinado conteúdo e inseri-los em nossa mente tal como num filme de ficção cientifica do século XX.
Voltando ao faz-de-conta, com a ascensão do cyberespaço, emergimos nossa cúpula agora no mundo dos games que simulam uma vida secundária, onde se metamorfoseia a indumentária, o arsenal de combate, a habitação, a estratégia e o relacionamento interpessoal, sejam num ambiente futurista ou medieval. Cria-se uma identidade criptografada oriunda de códigos que materializam um segundo eu. Certa vez, na tentativa de degustar desta experiencia, busquei me aventurar nesta tecnologia. Online, trajado de escudo e espada, cavalgando através de longínquos campos verdes, num cenário magistralmente arquitetado, semelhante às obras épicas que líamos nos livros de outrora, lembro-me de ter escutado o som de percussão e instrumentos de corda que se propagavam naquele ambiente. Segui aquela melodia curiosa, e por atrás de uma colina haviam cinco personagens/jogadores maltrapidos, cada um com instrumentos distintos em suas mãos, que executavam um concerto num sincronismo sublime. Aguardei-os terminar de tocar, e então os chamei para papear. Para minha surpresa, sequer eram músicos fora dali. Os mesmos me disseram que no instante em que se cria o seu avatar, haviam atributos a serem escolhidos - atributos estes cuja opção de tocar instrumentos existia. Curioso, muito curioso que estes artistas anônimos estivessem com o mesmo propósito – Criar um projeto de música instrumental tendo como ferramentas instrumentos virtuais que atuam de maneira homogênea aos palpáveis, num ambiente irreal, mas sem eles serem artistas quando estão offline.
Nossa nave do conhecimento agora nos faz retornar para nosso ponto inicial. Questionamos. Partindo do pressuposto de que não há estímulo, nas últimas décadas, cada vez mais inalcançável vai ficando os sonhos de pessoas que procuram se destacar na carreira musical, e acabam desistindo. Sem falar do preço dos instrumentos e das aulas que são inacessíveis pra uma parte majoritária da nossa sociedade. Indagamos. Seria o cyberespaço o novo point desses artistas anônimos? Seriam os softwares os culpados por uma alternativa à materialidade? Será que os instrumentos musicais um dia se tornarão dispensáveis? É favorável ou não a combinação da tecnologia com a arte?