Você é pobre porque quer!

[Rascunhos da vida]

Ao longo dos anos vividos na capital de São Paulo, encontrei uma forte cultura de glorificação do trabalho, generosamente temperada com atitudes motivacionais do estilo “a melhor maneira de prever o futuro é criá-lo”. Atualmente, as coisas parecem que só pioraram. Nas redes sociais, tem os workaholics que se vangloriam de sua jornada de mais de 14 horas ou até mesmo 18 horas. Oi? É sério?

No exterior, o “culto a ralação” é central para a imagem de empresas como WeWork, especializada em espaços de trabalho compartilhado. Seus ambientes (que suspeito serem bem “bacana”) exibem “belíssimas” frases motivacionais como “não pare quando estiver cansado, pare quando terminar”. Curiosamente, essa empresa, avaliada em US$ 47 bilhões (eram US$ 16 bilhões em 2016), já conta com uma rede de 500 estabelecimentos em 27 países (1). Nesse caso, se trata de uma lógica do “fazer sempre mais” (2) – vinculada a positividade tóxica - que culpabiliza o descanso e que socialmente o define como preguiça e falta de ambição pessoal e profissional (3).

Alguns familiares e conhecidos, ao compartilhar dessa “lógica do maior esforço”, acreditam que uma pessoa é pobre por ser preguiçosa, por não ter estudado e/ou por não quer nada de sério na vida. No mínimo defendem algo do tipo: “fulano é mesmo acomodado” ou “faça por onde, deus ajuda quem cedo madruga”. Os alvos de ofensas desse cardápio indigesto podem ser bem variados: o jovem pedinte faminto no farol, o senhor desiludido com a vida, tomando sua cachacinha no bar e a mãe solo desempregada, entre outros.

Recordo de um episódio (não que eu queira) ocorrido a muito tempo atrás na Avenida Paulista. Estava caminhando com um amigo e ele ao ver um senhor em situação de rua dormindo no banco de uma praça, soltou a seguinte pérola: “Aí sim! Eu indo trabalhar e ele curtindo a brisa, só na vida mansa!”.

Esses tipos de comportamentos podem ser entendidas como comentários ou questionamentos aparentemente inofensivos. Mas, na realidade esses insultos diários na realidade mobilizam diversos estereótipos e preconceitos implícitos contra minorias e pessoas de classes menos favorecidas (mulheres, população indígena, negra, quilombola, etc.).

Quando viram ofensas, trazem uma série de consequências e sérios prejuízos. O ofensor não reconhece (ou não faz questão) o quão difícil é viver na pobreza e até mesmo a dificuldade de sair dela. Atitudes como essas precisam de alguma forma serem responsabilizadas. Dependendo da gravidade, quando envolve questões relacionadas ao capacitismo, racismo e machismo, devem ser denunciada e enfrentadas de forma coletiva e sistematizada.

Sem querer ser cansativo, mas o que se pode destacar é que esse tipo de preconceito/ofensa é deplorável, pois pode fazer com que a vítima se sentir culpada, ou que parte da sociedade prossiga naturalizando essa situação, ao não questionar os privilégios de classes e/ou de determinados grupos que se perpetuam no poder. A ideia de igualdade de oportunidades passa anos luz de distância. De forma lamentável e revoltante, o Brasil prossegue entre os países mais desiguais do mundo(2). Mesmo com os avanços nas últimas décadas no país, ainda existem enormes barreiras econômicas, socioculturais e históricas relacionadas a classe, gênero, raça, localização, etc.

Ao ter maior consciência de que vivemos em uma sociedade com uma estrutura de privilégios, desigualdade e exclusão, passamos a entender de alguma forma que as pessoas não são simplesmente pobres porque desejam. E não adianta - como fazem diversos coaching de “sucesso” - bravejar aos quatro ventos que para sair de uma situação de dificuldade, basta pensar positivo e deixar de ser um acomodado para conquistar um “lugar ao sol” e encontrar o empreender que existe dentro de você. E nem apelar para ideologia neoliberal e completamente distorcida de meritocracia, dando o infeliz exemplo daquele fulano que com muito esforço “deu certo na vida” - tipo a pessoa em situação de rua que passou em primeiro lugar no concurso para o Banco do Brasil.

Glorificar a “ralação do trabalho” não é a bala de prata (solução mágica) para lidar e/ou superar o profundo abismo social presente em nosso país. Não adianta também jogar tudo na conta da pandemia da Covid-19 e da guerra na Ucrânia, como se fosse a caixa de pandora, que ao ser aberta, liberou as piores mazelas do país e do mundo.

O buraco é bem mais embaixo, meu caro Watson! Mas, o restante eu deixo para comentar depois. São cenas para o próximo capítulo de um Brasil construtor de ruínas (6).

Aguardem.

Referência

(1) Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/03/14/A-enciclop%C3%A9dia-online-sobre-microagress%C3%B5es

(2) Para mais informações sobre o assunto consultar a obra Sociedade do Cansaço de Byung-chul Han

(3) Trabalhar além da conta, além da hora, além do que nosso corpo e nossa cabeça aguentam pode resultar na síndrome do Burnout. Sugiro aqui o esse excelente podcast sobre o assunto: https://podcasts.apple.com/us/podcast/burnout-você-não-pode-dar-conta-de-tudo/id1505246538?i=1000554594439

(4) https://www.brasildefato.com.br/2017/03/21/brasil-esta-entre-10-paises-mais-desiguais-do-mundo-aponta-pnud

(5) Alusão a obra da jornalista e escritora Eliane Brum, Brasil, construtor de ruínas: Um olhar sobre o Brasil, de Lula a Bolsonaro.

Inã Cândido
Enviado por Inã Cândido em 18/04/2022
Reeditado em 18/04/2022
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