PROCURA-SE: MÁQUINA DO TEMPO
Na crônica de hoje, eu poderia discorrer sobre a Páscoa e seu significado, citar passagens bíblicas, comentar sobre o sermão desta manhã... poderia, contudo, não o farei. Afinal, o leitor conhece tudo isso de cor e salteado e, se ainda não conhece, certamente é porque não se interessa por tais assuntos. Por outro lado, poderia me queixar das barras de chocolate (cada vez menores e mais caras), lamentar que os bombons estão mais açucarados e com menos chocolate; poderia também me lamuriar acerca dos preços da cenoura, do bacalhau, dos ovos de chocolate, do tomate, do azeite que anda caro e com gosto de óleo... mas isso a leitora também sabe pois, assim como eu, vai ao mercado diariamente. Enfim, motivos não faltam para dar um ar queixoso à minha crônica. Todavia, a Páscoa não merece ser maculada com as reclamações de um cronista/consumidor.
Escrever é preciso, principalmente quando nos propomos o desafio de escrever semanalmente uma crônica. Às vezes, não é fácil encontrar um assunto; mas, tal como os paleontólogos e os arqueólogos que não desistem e cavam mais fundo, vou escarafunchando assuntos.... ainda que sejam os preços dos pescados ou dos chocolates. Quem para de procurar não se renova, disse Ivan Ângelo. Uma vez que hoje é domingo e preciso cumprir minha missão... mãos à obra.
Páscoa. As manhãs de Páscoa trazem sempre a lembrança dos meus sete anos. Oh idade linda, de ingenuidades e fantasias, época em que os sonhos povoam nosso cotidiano e ainda somos capazes de enxergar nas nuvens castelos e unicórnios e balões e dinossauros... Na escola, escolheram algumas crianças para participar do teatrinho sobre a Páscoa; da classe da tia Rosa, se não me decepciona a memória, fui o único escolhido. O figurino, simples: a meninada em traje de banho, um pompom branco colado no traseiro, dentões de plástico, orelhas de coelho feitas à cartolina. Rosto e nariz pintados, as tias nos fizeram sentar no comprido banco de madeira atrás da cantina; impacientes, esperávamos para entrar em cena.
Quando a diretora, finalmente, deu a deixa, caminhamos enfileirados sob o sol e, saltitantes como coelhinhos felizes, nos apresentamos no palco improvisado. Não recordo se decoramos alguma fala, acho que não: éramos muito pequenos, alunos ainda em alfabetização... Na plateia, crianças, pais, professoras, cantineiras, o pessoal da secretaria.
Depois da apresentação, cestinha de vime à mão, voltamos às nossas respectivas salas; como bons coelhinhos, fomos distribuir nossos ovos de chocolate. Os coleguinhas, ansiosos, esperavam nas carteiras; um ou outo bestalhão fez piadinhas igualmente bestas... no fundo, no fundo, morrendo de inveja por não participar da brincadeira.
Naquela tarde festiva e ensolarada, tias e merendeiras também ganharam seu quinhão: um ovinho embrulhado em papel celofane colorido. E, assim, a tarde passou, no ritmo da brisa que relava a bandeira no mastro, no ritmo do trem que executava a última manobra do dia, no ritmo das rodas da carroça que rangia na rua levando leite, queijo ou doce.
A criança que ainda se esconde em algum cômodo do meu ser corre e grita e reina neste domingo de Páscoa; suas peraltices atiçam minha memória, dão trabalho à caneta: a sunga marrom-claro que a mãe encomendou à costureira especialmente para o teatrinho, o gramado retomando as cores no outono, minha sandália, os trabalhinhos colados no mural, os coleguinhas recortando orelhas de coelho nas cartolinas e pintando cartõezinhos de “feliz Páscoa”, as folhas mimeografadas ainda cheirando a álcool, o coqueiro na porta da farmacinha indiferente ao vaivém escolar...
O vento sussurra na fresta da janela: recordar é viver... sei lá; só sei que às vezes dá vontade de regressar à Prof. Ormindo. Mas, enquanto não inventam a máquina do tempo, fico com minhas doces e chocolatíferas lembranças de Páscoa. E encerro esta crônica, que começou resmungona e rapidamente enveredou para o saudosismo, com o ensinamento de Paulo Coelho: se escutamos a criança que temos na alma, nossos olhos voltarão a brilhar.