Um Pobre Diabo!

O sujeito que encontrei naquela encruzilhada nem de longe parecia com o diabo que ilustrava meu imaginário. Estava acabado,  olhos fundos, magro, barba malfeita. Só o cheiro, que tinha algo de sulfúrico, lembrava um pouco a figura que eu esperava. Pediu que eu desculpasse qualquer coisa e veio logo recusando minha oferta. Disse-me que possui almas em excesso, que não sabe que fazer com tantas, que cansou-se de torturas mil, que secou a criatividade para maldades novas e que não suporta mais ser pastor de danados.

Eu ainda argumentei, que assinaria com sangue e aceitaria um carimbo em brasa no pescoço, mas não houve sinal de interesse. Eu só queria umas coisinhas materiais, dinheiro, uns bons anos a mais de juventude e beleza, charme e carisma. Ou os números da  Mega-Sena. Nada de mais, eu supunha. Outros pediram carreira de sucesso e cargos políticos, enquanto eu só queria os clichês dos desejos humanos.

Desiludido, convidou-me a sentar e dividir um goles de cachaça com ele. Foi então que pude entender a razão de sua crise existencial. Nunca havia ele estado tão descrente de suas próprias certezas anteriores. No início de sua empreitada,  era desafiador tentar o Homem. Precisava ser criativo em sua rede de ilusões para fisgar a vítima. Era generoso em suas dádivas. Fez muitos ricos e famosos.  Hoje, porém, admite estar ultrapassado! Seu ofício de tentar o homem é infrutífero posto que desnecessário. As vilanias sem par são arquitetadas sem sua consultoria. Sofre calúnias calado, culpado de violências e adultérios alheios, os quais não arquitetou. Enxotado, vilipendiado, ofuscado pelo homem. Pobre Diabo! Como tomam seu danado nome em vão!

Não precisa mais, afirmou ele, incutir pensamentos vis ou criminosos no indivíduo médio, já que os pensamentos maus se pensam sozinhos, por obra e graça da esperteza humana, pouco dada a crises de remorsos ou consciência pesada. Confessou-me ainda que uns e outros têm usurpado sua função milenar de oferecer ganhos materiais de forma rápida, sem precisar penhorar a alma, apenas uma fatia do soldo mensal.

Apiedei-me de sua alma torturada. Entendi que seu trabalho se tornou redundante. Tal qual os datilógrafos, os entregadores de leite, os telefonistas e outros ofícios engolidos pelos tempos modernos, não há mais espaço para o ladrão de almas, para o arquiteto do mal. Sua clientela o ultrapassou nos requintes de beligerância e crueldade.

Ao menos, concluí quando nos despedíamos, provado está que a criação divina não é flor que se cheire. Errado, não estava. Tocou-me o ombro com o casco, em franco sinal de agradecimento, deu-me uns conselhos e disse-me que olharia por mim de modo especial,  por eu ter sido honesta e respeitosa em minha oferta.

Não soube mais dele desde então.  E não mais precisei lançar mão de desesperada medida... Onde já se viu, vender a alma ao diabo? Ando ocupada cuidando do apartamento novo que comprei depois que fui promovida. As coisas estão indo bem. O segredo é manter-se ocupado, porque, como reza o ditado, o inimigo usa as mentes vazias como oficina.

Miss Araújo
Enviado por Miss Araújo em 16/04/2022
Reeditado em 16/04/2022
Código do texto: T7496704
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