Os sons do nosso lar

Na madrugada, silenciosa, ouço um click: cóclea. Não é preciso ver a claridade artificial da lâmpada incandescente para saber que minha mãe se levantou. Talvez, antes disso, o barulho de algum despertador a tenha acordado mas não ouvi; que eu me lembre, não. Lá fora, os sapos coacham e um bezerro berra: estou mesmo em casa, reconheço esses barulhos. Ouço a água caindo na pia e o esfregar da escova de dentes a tirar-lhe o gosto de sono da boca. Guardou a escova no armarinho e o fechou, cuja portinha só faz barulho ao se empurrada; puxada, não. Sentou-se. Seu xixi escorre privada adentro, ouço daqui. O desenrolar do papel higiêncico chega-me aos ouvidos. Tampa sobe, cesto de lixo, tampa desce. Olhadela. Descarga. Veste-se.

Suas passadas características denunciam o destino costumeiro. A água cai no canecão, que vai ao fogo; riscar de fósforo. Esse barulho... foi a porta do armário de aço sendo aberta. Devido a um desnível no chão, depois da troca de lugar, a portinha se enrosca na outra, que abre em sentido contrário: é o atrito entre as duas que produz o raspar de aço e é esse mesmo atrito que as mantêm fechadas.

Já sei que ela pegou a lata porque percebo sua tampa sendo colocada sobre a mesa. A mariquinha é posta em cima da pia. Ouço a porta da geladeira sendo aberta e depois, fechada pela força gravitacional: pegou o coador. Um pigarrear. Colher na gaveta; se estivesse no escorrer de pratos ainda, seria outro o barulho. Coador na mariquinha, que está manca e se desequilibra ao menor peso. Quatro colheres de pó; não ouvi, mas sei. Ouço a cadeira sendo arrastada; sentou-se.

Posso supor, apenas supor, o que ela pensa enquanto espera a água ferver. Talvez pense em sua mocidade longínqua, em seu pai e em sua mãe mortos, nas contas que vão vencer - e nas já vencidas -, nas suas dores nas juntas; nos filhos, por certo! E na água... Ferveu! Posso ouvir daqui o seu borbulhar. Arrastou a cadeira, contornou o balcão. Escuto o botão do fogão ser retornado ao ponto de partida.

Agora, a água está sendo despejada dentro do coador. Ouço o café, escorrido já, caindo no fundo do outro canecão, que em pouco tempo estará cheio. Mais um despejar de água quente - passou a fervura - cobre o pó no coador. Após mais três despejares, será aguardar o restante do antecafé descer coador abaixo.

Ouço seus passos... A direção, agora, é o meu quarto. Finjo que estou dormindo. Ouço três batidas na porta, dadas com os nós dos dedos. Antes de ser aberta, ouvirei o barulho dela raspando no portal, que já tem uma marca de desgaste provocado pela fricção. Ouço a maçaneta ser girada. Ouço as dobradiças rangerem. Click! Luz na cara. A vida me toma de assalto.

Antônio Carlos Policer
Enviado por Antônio Carlos Policer em 16/04/2022
Reeditado em 16/04/2022
Código do texto: T7496260
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