O REGATÃO DE MADEIRA NA AMAZÔNIA

Uma realidade Amazônica

Autor: Moyses Laredo

Raimundo conhecido como “Bubu” se criou dentro da serraria, onde o pai trabalhava na oficina, com ofício de “afiador” (afiar as serras fita). Sempre o levava consigo, naquela época, década de 80, dizia que era melhor aprender um ofício do que se criar pelas ruas. Seu pai o colocava para estudar as lições na cartilha “Caminho Suave”, Bubu acabou se interessando mais por matemática, ficou craque em contas de cabeça. A Serraria possuía um rebocador de nome “Arrasta Pau” equipado com um motor diesel Kubota de 110 H.P. fundeado na baía calma no Rio Negro onde ficava a dita serraria. Quando cresceu, foi aproveitado como ajudante na oficina, fazendo o mesmo que seu pai fazia, mas, o desejo sempre foi o de comprar madeira, admirava o tratamento dispensado aos “Compradores” e queria se sentir importante. Um dia, faltou um ajudante no rebocador, sabendo do seu interesse o gerente o escalou para acompanhar a viagem lhe oferecendo um abono no salário, se animou, pois já lidava com as madeiras ali do pátio, era importante para escolha da serra, pois tem madeira de tão dura, como o Ipê, o mulateiro, ou o roxinho, que não é qualquer serra que corta, conhecia todas as madeiras que a Serraria exportava, aprendeu rápido a lidar com aquilo, a oferta do salário era tentadora, a essa altura, tratou de se inteirar com os mais antigos das manhas de como comprar madeira. As toras se compra por cubagem (m³), mas era preciso primeiro identificar o tipo de madeira para medi-la, assim, diante desse novo desafio, começou a percorrer o estoque de toras no pátio para o reconhecimento, até cheirava as toras, cada madeira possui um aroma específico, também ia por lá à noite fazer isso, queria se acostumar com a escuridão, tinha que se especializar em madeiras, os seus amigos mais chegados, diziam que ele até conhecia “pau pelo cheiro”, brincadeiras à parte, mas era isso mesmo, de olhos fechados ele identificava o tipo da madeira. Fez o que pode desse dia em diante, passou a fazer parte da tripulação, e acompanhava sempre os compradores. Até que um dia, por um lapso do destino, o Comprador se acidentou quando conferia uma jangada e então, ele se transformou num dia pra noite em “Comprador”, função essa já almejada há muito.

Em sua primeira viagem solo, sentiu a grande responsabilidade, diante daquela poderosa embarcação que agora estava sob sua inteira responsabilidade e principalmente, as negociações da compra das madeiras. Fez os abastecimentos de gêneros alimentícios, arroz, feijão, óleos, jabá, farinha, sal e tudo mais que se precisaria para um rancho robusto de dois meses, além disso, também levava também 1.500 m de cabo de aço, 3.000 argolas com os cravos e 3.000 peias para amarrar as toras. A carne e o peixe, comprava-se no caminho, o que pescasse ou, que se pudesse caçar ou comprar. A equipe era formada por dois timoneiros (comandantes), o maquinista, o taifeiro (cozinheiro) e dois marinheiro (quem amarravam as toras).

Com tudo pronto e conferido, desatracaram lentamente “descendo” (a favor da correnteza) o Rio Negro até chegar no Rio Amazonas depois, seguiram até Itacoatiara, de lá, retornaram e “subiram” agora o Rio Solimões, seguiram para a primeira cidade do roteiro de compras, de nome Codajás, em seguida iriam para Tefé, Coari, Fonte Boa e finalizava em Foz do Jutaí. Levaram oito dias na viagem, o motor valente, dava tudo; na “subida” (contra a correnteza) no caminho efetuavam-se as compras das madeiras sempre de fornecedores conhecidos, inspecionava as toras, identificava a madeira, conferia a cubagem e pagava-se tudo à vista, para tal, levava dinheiro vivo, nada de cheque, nas profundezas do interior amazônico, nem Banco sequer existia para destentar (descontar) cheques, a não ser que o caboco tivesse que vir à Manaus para esse fim, coisa quase impossível para quem é acostumado no mato. Diante dessa realidade, já levava uma maletinha com dinheiro vivo, imagine a quantidade que seria hoje para comprar 2.000 toras. A maletinha era mantida à sete chaves, trancada no seu camarote. Assim que comprava as toras, pegava os recibos, depois peiava-as (amarras de carga), colocava o grampo com argola em cada uma delas, depois passava o cabo por elas, prendendo-as de modo que uma tora ficasse ligada a outra, finalizava com a amarração com as peias, formando uma pequena jangada, que chamavam de jangadinha, e deixava-a aos cuidados do vendedor, para pegá-la na “baixada”, esse era assim, o preceder do comércio local, às vezes, chegava na localidade de compra, tarde do dia mesmo assim, tinha que ver a madeira já à noite, e com a tora n’água, era difícil fazer isso, o olfato ajudava muito na identificação, mas tinha que se equilibrar por cima delas para medi-las, naquela escuridão miserável, o balançar das toras com o banzeiro, e ainda com uma lanterninha fuleira que mal alumiava seus pés, se caísse n’água as toras se fechavam e o sujeito tinha que ter fôlego para nadar por baixo d’água até sair da jangada, o cuidado era nadar de travessa às toras, pois se seguisse pelo comprimento, acabava se afogando e não via o fim da jangada, tinha-se muitos relatos de mortes assim. Bubu, aqui acolá, dava umas escorregadas, mas nunca caiu, graças à D’US, o treinamento valeu demais, em seguida, media o comprimento das toras e seus diâmetros, para isso usava uma trema de alumínio leve e de boa qualidade que não enferrujava, finalmente com esses dados na mão, consultava a tabela que levava no bolso, que fornecia direto a cubagem da tora, ficava fácil. Às vezes, na hora do pagamento, surgia umas discussões quanto ao tipo da madeira, muitas vezes a madeira mudava de nome, de região para região, dependendo do município, as de lei (*) eram as mais caras, ser de lei é uma expressão que nasceu no início da exploração lusitana, esse termo foi criado para designar as madeiras que só podiam ser derrubadas se a Coroa Portuguesa autorizasse pois tinham receio que fossem contrabandeadas para os espanhóis. Como as madeiras de Lei tinha maior densidade ρ>1 (rô maior que 1). O número 1 é a densidade da água, serve como parâmetro, o que for maior do que 1 afunda e o que for menor que 1 flutua, simples assim. As madeiras que afundavam, ou seja ρ>1 como o cumaru ferro, a sucupira, a maçaranduba, o louro, o angelim, o cedrinho, a cerejeira etc. tinham que ser peiadas nas outras que flutuavam, ρ<1 como: o açacu, a virola, a canela, a cerejeira, o eucalipto, o freijó, a imbuia, o louro, a peroba do campo, o pau marfim etc. assim, se podia transportá-las, embora as de maior densidade fossem as mais procuradas e mais caras, entretanto, não se podia trazer só delas, pois a jangada certamente afundaria.

No caminho de volta, ia-se atrelando à jangada principal, as jangadinhas de toras que na ida foram deixadas de espera para se unir as demais, tudo engatadas na rabeta do rebocador. Após amarrada a última jangada, desse ponto fatal, partia-se em direção à Serraria numa marcha só, sem parar, até porque, se parassem, a jangada se chocaria e as toras se espatifariam de encontro ao barco ou, nos barrancos, porque tendiam a seguir navegando com o impulso adquirido (Lei da inércia). De descida (a favor da correnteza) levava-se cerca de 20 dias, por causa da carga de reboque, navegando dia e noite sem parar, ou, sequer podia-se desligar o motor, não se sabe como o timoneiro reconhecia o caminho, sua visão era empanada pelas sombras da noite, às vezes, pelas chuvas, que malmente se via as silhuetas das árvores à diante, usava um holofote mais fraco do que caldo de bila (caldo de bolinha de gude) dizer dos nordestinos, mais ele conhecia o caminho e os meandros das curvas do rio, e de longe já ia dando os descontos das curvas, como fazem as grande carretas com reboques, quando vão manobrar em ruas estreitas. Na tripulação, tinham dois timoneiros, um para o dia e outro para a noite, o que passava a noite, dormia o dia todo, só levantava para mijar e comer. A jangada que o Kubota arrastava, tinhas mais de 300 metros de comprimento e uns 30 metros de largura, a toada do motor era sempre a mesma, o ruído branco, com é chamado, fazia qualquer um dormir cedo, às sete horas, depois do jantar o Bubu já se recolhia ao seu camarote, mas, em algumas noites claras, ele subia ao toldo do rebocador para se deliciar com o esplendor do céu, contava aos amigos, “- Que coisa linda de se ver, inimaginável para quem nunca vislumbrou o céu Amazônico limpinho, sem nenhuma luz para atrapalhar a visão em 3D de 180º”. Assistia chuvas de meteoritos, que aqui acolá, riscavam os céus vindo de todos os lados, um espetáculo deslumbrantes que o colocava em contato direto com a inteligência do Criador (Bendito seu nome) onde ele aproveitava aquele momento mágico, para pedir proteção para si e para todos da sua família.

Por cima, ao longo da jangada, se avistavam todo tipo de animais selvagens, desde jacarés, tartarugas, tracajás, cobras, macacos, preguiça; era só focar com o holofote do comando, que aparecia sempre um par de olhos aflitos em meio a imensa jangada. Dava até para identificar que tipo de bicho era, pela distância entre os olhos e o reflexo sobre a jangada. O que dava pra comer, a cabocada pegava e jogava na panela, nessa época não existiam nenhuma proibição, não reclamava porque até que ajudava para completar a mistura (proteína). O porquê desses animais na jangada, se explicava assim, quando os cabocos cortavam as árvores na seca, deixavam as tora no mesmo lugar, preguiçosos não! ... assim que chegava a cheia eles formavam pequenos grupos delas, das que flutuavam amarradas com as que afundavam, por lá mesmo eram deixadas, a água fazia o resto do trabalho, e nessa maneira, os bichos que se tivessem agarrados nelas, iam juntos.

Numa certa ocasião, depois de comprar grande quantidade de toras numa comunidade, Bubu foi convidado pelo prefeito para almoçar, era de bom alvitre, o convidado se servir primeiro, quando meteu a colher na panela, surgiu um mão inteira de macaco, e era das grandes, o susto foi enorme que chegou a dar um salto pra trás, tratou de dizer logo que era alérgico à carne de caça, se comesse aquilo cairia no chão todo empolado, tiveram cozinhar uns ovos de tracajá, para comer com farofa e ele empurrou pra dentro, depois, já no rebocador, arrematou o fraco almoço, com feijão e jabá que tinha sobrado na panela, enquanto isso, o pessoal se acabava no macaco, chupavam os ossos das mãos, da cabeça, da costela, impressionante a imagem da comilança, os ossos deles são iguais aos dos humanos, contou que não consegue esquecer até hoje as imagens dos homens comendo o macaco, remete-lhe o pensamento, às histórias de tribos de índios antropófagas, da época do descobrimento, que comiam seus inimigos.

Nessa primeira viagem ele comprou mais de 2.000 toras, quando aportou com aquela imensa jangada que não tinha mais fim, o seu gerente, pôs a mão na cabeça e perguntou se ele não assaltou nenhuma serraria no caminho, só faltou ir na lua de tanta alegria, não acreditava nos seus olhos, nunca tinham trazidos tanta madeira. A Serraria ficou funcionando durante uns três meses sem parar. Foi quando o gerente o chamou pro lado e disse que iria ganhar um prêmio além do seu salário, dessa vez, ele deu um prêmio no valor de um fusca zero, que imediatamente foi buscar na representante da Volkswagen em Manaus, a Mavel. Ficou tão animado que às vezes, chegava a fazer até uma viagem por mês, era altamente desgastante e arriscado demais, a cada viagem vinha um gordo bônus. Ele vivia feito um bicho, sujo fedido, cabeludo e maltrapilho, mas, a recompensa por cada viagem, era grande e generosa, sabia que tinha em algum momento, parar, os risco eram enormes, os cabocos já estavam o abicorando, eles sabiam que levava muito dinheiro na maleta, passou a carregar uma “doze”, contatou um caboco para acompanha-lo, ele ostentava a arma, para desestimular qualquer investida, mas, isso não impediria se realmente quisessem roubá-lo. Pensou uma maneira de escapar da sanha dos que pensavam em lhe assaltar, percebeu que os cabocos que vendiam-lhes as madeiras, às vezes olhavam para aquele dinheiro e não sabiam o que fazer, nas vendinhas de perto das colocações, quase nada podiam comprar, os regatões que por lá passavam, uma vez por mês, cobravam até dez vezes o preço de um produto. O que eles tinham muitas necessidades, eram coisas simples, como: sal, chumbo, espoleta, pólvora, sandálias, vasilhames, linha, anzóis, vestidos, panelas, louças, sabonetes, remédios, cachaça etc. Ele então, resolveu ao invés de levar tudo em dinheiro, com uma parte compraria esses bregueços (objeto pessoal, pertence; qualquer objeto) e assim, o pequeno lucro que obtinha no escambo, comprava mais madeiras além da cota que a própria Serraria havia estipulado com o dinheiro que levava. Passou a comprar dele qualquer excesso de madeira que trouxesse, grande plano. Por falar em plano, o seu era juntar dinheiro o suficiente para montar o próprio negócio. Foi o que fez depois de mais uma dúzia de viagens. Montou uma revenda de carros usados, tempos depois vendeu bem, se estabeleceu numa oficina de manutenção de veículos, vive com tranquilidade.