CRÔNICA | Bilhete
A palavra tem poder
Era um preconceito. Equivocadamente acreditei que eu não obteria nenhum ganho em ler mais de um livro ao mesmo tempo, senão confusão, desordem, não entenderia bulhufas. Ledo engano. Posso conciliar, associar, comparar, concatenar muitas e muitas leituras simultaneamente. Não é coisa de "gênio", acho que está mais para aquele outro apetite da alma, irmão da inteligência: a vontade.
Hoje, passados três anos desta feliz descoberta, mantenho sobre a mesa de estudos uma dúzia de livros que vou lendo ao doce sabor do mais puro interesse. Nesta manhã, no entanto, decidi que não seguiria com as leituras da véspera, fui então à estante e peguei um livro qualquer. Era um livro velho, antiquíssimo. Capa de couro pardo envelhecido, desgastes na lombada, muitas páginas marcadas pela fome dos insetos bibliófagos.
Abri o velho volume e ganhei duas surpresas: um odor maravilhoso de antiguidade de papel e um bilhete que caiu descrevendo uma espiral a dois passos à minha frente. Não foi uma surpresa completa, pois eu já esperava sentir o cheiro de livro velho. O bilhete, aliás, só caiu porque me descuidei ao aproximar o volume do rosto a fim de melhor favorecer o sentido do olfato. Apanhei o papel tão antigo quanto o livro e li. Os dizeres foram escritos à máquina; uma pena, pois eu esperava os contornos de uma caligrafia a bico de pena.
Eis o que dizia o bilhete:
"Depois de meses anestesiado pelos imperativos do cotidiano, percebi que havia caído num marasmo da criatividade, da inteligência, do espírito. Não fiquei surpreso. Mesmo aqueles que têm a inteligência atrofiada em algum grau não terão grandes dificuldades em perceber que períodos de preguiça intelectual são inerentes à vida. O mal está precisamente em se deixar estar, semimorto, sob esta atmosfera na qual nada acontece e, pior, nada é procurado.
Os místicos, quando alcançam aquele ponto na vida de oração no qual não veem mais diferença entre rezar e dormir, dizem que entraram num período de 'secura espiritual'. Talvez seja só um outro nome para indiferença, mas uma indiferença involuntária em alto grau. Frequentemente dizemos com o Apóstolo: 'Porque não faço o bem que eu quero, mas o mal que não quero, esse faço'.
Lembrei de algo que, pelo menos nestes últimos meses de marasmo, jazia adormecido nos limites da minha consciência: os demônios são expulsos pelo poder das palavras. As palavras têm o poder de restaurar a ordem das coisas, o equilíbrio do mundo. Àquele que é feito à imagem e semelhança do Criador é dado o poder de, mutatis mutandis, pôr ordem nas coisas valendo-se também do verbo. À sua maneira, na medida vacilante da sua inteligência, o homem pode invocar o restabelecimento de uma ordem perdida.
Daí que estão cobertos de razão aqueles que dizem, à guisa de conselho, que escrever ajuda a botar ordem na própria vida. Ordem, hierarquia de valores, senso das proporções. A força desta coesão brota no interior do indivíduo, de onde emerge como uma luz a dissipar as trevas da ignorância. Mas não de qualquer ignorância, na acepção científica, material do termo. Não. A coesão, a ordem, a luz do homem que se volta para dentro de si destroem a ignorância do indivíduo sobre ele mesmo".
Cuidadosamente dobrei o velho bilhete e o pus novamente entre as páginas do livro. Descobri que, a despeito da voracidade das leituras, da quantidade de material para os estudos que um sujeito põe sobre a mesa, às vezes tudo o que ele precisa para ascender a níveis elevados de entendimento é a rápida, singela e inesperada leitura de um bilhete.
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