PALAVRAS CRUZADAS
Texto excluído do livro “Hacasos” do ator Samuel De Leonardo
Subíamos a Rebouças em direção à Paulista no ônibus da linha 577-10. Como de rotina, trânsito intenso. Para, anda. Mais para do que anda numa morosidade terrível. Um empurra-empurra que levava à exaustão. Cada qual se segurando da maneira que podia literalmente encaixados como sardinhas na embalagem da Auto Viação Para Todos. Todos no mesmo pacote, no mesmo molho, suados e cheirosos.
Àquela hora, seis, pior que viajar em pé e espremidos numa condução lotada, num fim de tarde calorento era aguentar o passageiro bêbado que não parava de incomodar a senhora que seguia sentada, lápis e o Coquetel em mãos, tricoteando suas palavras cruzadas, ludibriando o tempo e o sufoco. Uma letra aqui, outra ali vai preenchendo os quadrinhos da página e formando as palavras com todo o cuidado. O sujeito em pé, ao seu lado todo despojado, camisa desabotoada e por fora da calça, com ar de quem bebera toda a pinga do mundo, era só balanço. Com esforço descomunal se escorando nas pessoas para não cair tenta acompanhar quase que mecanicamente os movimentos dela.
A cada palavra preenchida, o cara interrompia:
– Não, esta palavra é com dois esses. Agora sim, está certo. Aí em dona, conhece tudo do vernáculo. Sem se importar até então com as interdições, ela pacientemente continua a decifrar o quebra-cabeça e a formar as linhas horizontais e as verticais.
O homem, como se íntimo fosse daquela senhora, intensificou ainda mais as abordagens extrapolando todos os limites da pobre mulher:
- Não, não é com “ge” é com “jota”, jota de jurubeba.
Ela já com a paciência saturada levanta a cabeça e olhando sério lhe dirige a palavra:
- Cachaceiro!
- Dona, esta é com “xis”. – responde o intrometido.
- Além de bêbado, feio e fedorento é analfabeto – retruca a mulher.
O sujeito sem perda de tempo responde com uma sonora gargalhada:
- Ah, essa é fácil – Se for com quatro letras é “nóis”!